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Ator, comediante e roteirista, é um dos criadores da TV Quase, que exibe na internet o programa "Choque de Cultura".

Descrição de chapéu

Vendilhões de açúcar do pré-primário

Havia algo errado em seus olhos. Ele estava rindo. Rindo com os olhos

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Lá pelos cinco anos fiz a minha primeira transação financeira. Minha avó sempre comprava um picolé para mim na porta da escola. Eu sabia quanto custava e conhecia todo o ritual de compra e venda, mas por algum motivo nunca me era permitido conduzir sozinho a operação, até que o grande dia da iniciação chegou: minha avó me entregou uma nota e disse que antes de mostrar o dinheiro, eu deveria perguntar quanto custava, para só depois que me fosse revelado o preço, aí sim eu poderia efetuar a transação. 

Amassei a nota bem forte no meu pequeno punho cerrado para que nenhum contato visual do mundo exterior com a cédula fosse possível e, observado de longe pela minha avó, caminhei decidido até o vendedor. Perguntei quanto custava, ainda que me sentindo estranho, já que eu sabia exatamente quanto custava e sabia que ele sabia que eu sabia exatamente quanto custava. De todo modo, se a tradição era essa, eu não estava na idade de quebrar tradições.

Sem surpresas, ele me revelou o preço e, quando eu me preparava para a transferência, notei que havia algo errado em seus olhos. Ele estava rindo. Rindo com os olhos. Ele sabia. Sabia que tudo aquilo se tratava de uma grande farsa, um teatro em cujo palco fui arremessado contra a minha vontade. Eu queria só comprar um picolé de forma minimamente independente e acabei como uma marionete na frente de toda a escola. Em nenhum momento fui levado a sério. O vendedor e minha avó eram cúmplices num jogo de faz de conta disfarçado de transação financeira. 

Minha vontade era arremessar a cédula ao vento, virar o carrinho de picolé de cabeça para baixo, chutar o de pipoca doce (aquela rosa) e tombar o de bombom, aos gritos de “Hipócritas! Falsos comerciantes!”, expulsando aquele covil de farsantes do templo sagrado da educação pré-primária, como Jesus fez com os vendilhões, mas num contexto um pouco diferente. Sem contar que nessa época diziam que traficantes injetavam cocaína nos bombons vendidos em porta de escolas, possivelmente no modelo de start-up menos rentável financeiramente da história. 

Mas eu não fiz nada. Fingi a inocência que era esperada de mim, concluí o podre jogo de cartas marcadas do capitalismo e peguei meu picolé de leite condensado. Era bom demais. Não tinha como.

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