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Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

Biden em Kiev

Hipotética vitória russa assinalaria declínio radical do papel global dos EUA

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Joe Biden emergiu de surpresa em Kiev para libertar os EUA da sombra de Cabul. Sua mensagem, destinada ao público doméstico, aos aliados europeus e à Rússia: não abandonaremos a Ucrânia. Sem a humilhante retirada americana do Afeganistão, em 2021, dificilmente Putin teria deflagrado sua guerra imperial de conquista. Hoje, do Donbass à Crimeia, está em jogo o equilíbrio geopolítico mundial.

O proclamado "momento unipolar" da implosão da URSS e da primeira Guerra do Golfo (1990-91) ficou no passado –e, talvez, na esfera das ilusões. Na hora da retirada do Vietnã, meio século atrás, a economia dos EUA representava 36% do PIB global; hoje, representa cerca de 24%. O poder bruto chinês, a dimensão da economia da União Europeia e o arsenal nuclear russo configuraram uma geometria multipolar. Os EUA já não são o hegemon, mas o "primus inter pares". A Ucrânia situa-se numa encruzilhada histórica: um teste decisivo da superpotência que arquitetou a ordem mundial.

Os presidentes americano, Joe Biden, e ucraniano, Volodimir Zelenski, em Kiev - Evan Vucci-20.fev.23/AFP

"Vitória" é, nessa guerra, um conceito em mutação. Um ano atrás, do ponto de vista da Ucrânia, significava sobrevivência: frustrar a marcha das colunas russas a Kiev. A épica resistência ucraniana, pontilhada por triunfos no campo de batalha, uniu a nação e transformou seu objetivo militar. A guerra de agressão tornou-se uma guerra de independência. Hoje, a quase totalidade dos ucranianos (inclusive a maioria dos russófonos) define "vitória" como a retirada russa de todos os territórios invadidos, inclusive a Crimeia ocupada em 2014.

O compromisso dos EUA com a defesa da soberania da Ucrânia impede a Casa Branca de engajar-se em negociações diretas com o Kremlin, por cima do governo ucraniano. O máximo que Biden poderia impor a Kiev seria a admissão de um armistício baseado na retirada russa às linhas de cessar-fogo vigentes um ano atrás.

Vai nessa direção a resolução aprovada pela ONU por maioria esmagadora. O Brasil alinhou-se à resolução, afastando-se finalmente da hipócrita neutralidade mantida por Bolsonaro e ensaiada também por Lula. Mas a retirada é inaceitável para Moscou –e implicaria o desmoronamento do regime putinista.

Originalmente, Putin definiu "vitória" como a derrubada do governo ucraniano e a incorporação do país à "Grande Rússia", na condição de protetorado. A meta maximalista dissolveu-se ao longo de meses de insucessos bélicos e o chefe do Kremlin a redefiniu como a anexação do leste e do sul ucranianos. No cenário atual, a estratégia russa é concluir a ocupação dessas áreas e forçar um armistício baseado no mapa militar. O caminho para tanto é a ruptura da aliança internacional que sustenta a resistência ucraniana.

Não é impossível. Nos EUA, Trump e DeSantis lideram a ala republicana isolacionista disposta a abandonar a Ucrânia. Na Europa, os impactos econômicos e migratórios da guerra prolongada abrem trincas, ainda subterrâneas, nas elites políticas. Daí a aposta de Putin num plano de "paz" que a China promete apresentar, talvez com apoio da Índia. A "paz" com anexações não passaria do hiato preparatório para uma terceira invasão.

A hipotética "vitória" russa assinalaria um declínio radical do papel global dos EUA, paralelamente à ascensão do isolacionismo republicano. Na União Europeia, produziria uma cisão entre o núcleo franco-alemão e as nações do antigo bloco soviético. Propiciaria, ainda, a projeção de poder da China e da Rússia.

O desfecho putinista anunciaria o colapso da ordem internacional alicerçada em regras e expressa na Carta da ONU. No seu lugar, surgiria algo como o "pan-nacionalismo" sonhado por Ernesto Araújo, o ex-chanceler de Bolsonaro: um sistema de esferas de influência gerenciadas pelas grandes potências e a proliferação de regimes autoritários baseados em identidades étnicas ou religiosas. A guerra na Ucrânia não é um conflito regional.

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