Diz-se por aí que Lula ainda não desceu do palanque. De fato, na campanha eleitoral, o candidato até que evitou o proverbial palanque: buscou aliança com o centro democrático, sinalizou uma pacificação nacional, prometeu governar para todos. Foi só depois dela que o presidente subiu no palanque, reacendendo a fogueira da polarização. A estratégia discursiva organizou-se sobre quatro eixos, pontilhados por mentiras factuais e clamorosas contradições.
1) Independência do Banco Central
A linha definida por Lula foi exibir o BC como inimigo: um agente do bolsonarismo engajado na elevação dos juros para sabotar o crescimento econômico. Gleisi Hoffmann declarou que "o BC não deu um pio sobre as façanhas orçamentárias de Bolsonaro". É fake news impune: durante o (des)governo bolsonarista o BC elevou a Selic de 2% para 13,75% e, ata após ata, o Copom alertou para as "façanhas" cometidas contra a responsabilidade fiscal. O BC é o STF de Lula.
2) Desestatização da Eletrobras
Lula qualificou a privatização da empresa como um crime contra o povo ("bandidagem", nada menos), anunciando que a AGU acionará o Judiciário para revertê-la. A "bandidagem", contudo, foi aprovada pelo Congresso, com o voto dos neoaliados lulistas. O governo pretende transformá-los em réus? Ou prevaricará? O presidente pediu, em 27 de janeiro, que os líderes parlamentares do governo desistam de "judicializar a política". Pelo visto, a orientação só vale para os outros.
3) A natureza do golpismo
"Atos golpistas foram revolta dos ricos que perderam as eleições", diagnosticou Lula, referindo-se ao 8 de janeiro. Demagogia em estado bruto: não faltaram pobres nas depredações golpistas de Brasília. Bolsonaro obteve 49% dos votos, vencendo no Sudeste, Sul e Centro-Oeste. Seriam os "ricos"? Nessa hipótese, o Brasil deixaria a Suíça no chinelo.
4) Narrativa estatal sobre o impeachment
Como presidente, em visita ao exterior, Lula afirmou que o impeachment de Dilma Rousseff foi um "golpe de Estado". Hélio Doyle, novo presidente da EBC, quer que a estatal de comunicação oficialize a narrativa revisionista. O mesmo STF que anulou as condenações de Lula supervisionou o impeachment, atestando sua legalidade. De acordo com a fake news lulista, os presidentes do Senado e da Câmara e os juízes do STF são golpistas –portanto, criminosos. Segundo a lógica presidencial, o próprio Lula chefia uma quadrilha de criminosos golpistas, pois dá guarida, no seu governo, a eminentes apoiadores do impeachment, como Alckmin, Tebet e Marina Silva, entre outros.
A polarização tem mil utilidades. Mantém a base militante aquecida, substitui o debate racional pelo intercâmbio de acusações, inventa bois de piranha para barbeiragens econômicas. Mas, especialmente, fabrica um conveniente "inimigo do povo".
A retórica polarizadora de Lula forma um arco completo. O "golpe do impeachment" e o ensaio golpista do 8 de janeiro são elementos da guerra permanente dos "ricos" contra os "pobres". A independência do BC e a privatização das estatais não passam de ferramentas dos "ricos" numa ofensiva destinada a conservar as desigualdades sociais e eternizar a pobreza. Os que não estiverem comigo são soldados da guerra da elite contra o povo.
Lula dá de dez em Bolsonaro no esporte da polarização. Começou bem antes, com a "herança maldita" de FHC, no seu primeiro mandato, quando prosseguia a política macroeconômica do antecessor. Sabe deplorá-la sem corar, enquanto a pratica. Acima de tudo, conhece a arte de adaptar a estratégia à conjuntura.
O presidente fala a uma nação traumatizada pelo 8 de janeiro. Atrás de suas sentenças, há o espectro de Bolsonaro. A meta final é identificar a crítica a seu governo com o golpismo bolsonarista. Não há espaço para mais que dois: quem não estiver comigo, está com ele. Eis o que Lula quer dizer.
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