Editada por Maria Brant, jornalista, mestre em direitos humanos pela LSE e doutora em relações internacionais pela USP, e por Renata Boulos, coordenadora-executiva da rede ABCD (Ação Brasileira de Combate às Desigualdades), a coluna examina as várias desigualdades que afetam o Brasil e as políticas que as fazem persistir
STF tem de dar atenção à fome das pessoas em situação de rua
Poder público não pode impedir ações da sociedade civil em prol da segurança alimentar
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O cenário de privação de direitos fundamentais básicos das pessoas em situação de rua no Brasil é grave. E o panorama se torna ainda mais perverso se levarmos em conta que o número de pessoas em tal condição se intensificou nos últimos anos.
De acordo com o Ipea, em uma década, entre 2012 e 2022, essa população cresceu 211%. Com a pandemia, o aumento acelerou: 38% a mais de pessoas nas ruas.
Não é difícil —ou não deveria ser— notar crianças, idosos e famílias inteiras nas ruas das cidades de todo o país. Mas a realidade dessas pessoas é de invisibilidade.
Foi diante desse cenário alarmante que, no final de agosto, mês que marca o Dia Nacional de Luta da População em Situação de Rua, o Supremo Tribunal Federal trouxe boas notícias. De forma unânime, confirmou decisão liminar concedida no âmbito de uma ação constitucional –ADPF nº 976– que trata justamente da garantia de direitos à população em situação de rua.
Na decisão, o STF determinou que estados, Distrito Federal e municípios devem observar as diretrizes da Política Nacional para a População em Situação de Rua. A decisão também vedou ações violadoras de direitos básicos, como o recolhimento forçado de bens e pertences e a remoção e o transporte compulsório dessa população.
O aumento da população em situação de rua está diretamente atrelado à desigualdade sociorracial, que é multifacetada e complexa. Por isso se exige dos Poderes constituídos uma abordagem ampla, que considere a garantia de todos os direitos sociais. Nesse sentido, a decisão representa um marco, mas notamos a ausência da centralidade do direito à alimentação, pressuposto à subsistência.
Apesar do reconhecimento de que a segurança alimentar constitui "elemento de especial atenção quando pensada a crise da rua", sua garantia não recebeu na decisão a mesma atenção.
Como é sabido, o direito à alimentação foi sistematicamente violado no governo anterior. Assistimos alarmados à reinserção do Brasil no chamado Mapa da Fome. De acordo com relatório da FAO divulgado em julho deste ano, entre os anos de 2020 e 2022, 4,7% da população brasileira enfrentava fome, levando aproximadamente 9 milhões de pessoas à desnutrição. Segundo a Rede Pensann, em 2022 a fome se tornou cotidiana para 33,1 milhões de brasileiros. Seis em cada dez brasileiros convivem com algum grau de insegurança alimentar.
Além disso, a violência perpetrada pelo Estado em relação à população em situação de rua gera outras violações: ações de promoção da segurança alimentar são dificultadas ou impedidas, com alegações cruéis como a de que podem sujar as vias, em uma inversão absoluta de valores. Não apenas não se garante o prato de comida como impede-se sua chegada pela mão da sociedade civil organizada. Assim, assistimos reiteradamente a notícias de forças de segurança hostilizando ações solidárias de distribuição de alimentos e refeições.
A situação atual exige do poder público uma atuação dupla. De um lado, formular e implementar urgentemente ações de segurança alimentar e nutricional suficientes e adequadas. De outro, não impedir que a sociedade civil –e suas cozinhas solidárias, por exemplo– busque suprir a ausência do Estado na garantia dos direitos desses cidadãos.
Está nas mãos do STF garantir esse cenário ao julgar o mérito da ADPF nº. 976. E cabe a nós todos acompanhar esse debate e pressionar para que ele não se torne invisível, como vem acontecendo com a fome de tantas pessoas em nosso país.
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