Desigualdades

Editada por Maria Brant, jornalista, mestre em direitos humanos pela LSE e doutora em relações internacionais pela USP, e por Renata Boulos, coordenadora-executiva da rede ABCD (Ação Brasileira de Combate às Desigualdades), a coluna examina as várias desigualdades que afetam o Brasil e as políticas que as fazem persistir

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Desigualdades
Descrição de chapéu alimentação

A fome é um projeto político, sua erradicação também precisa ser

É muito perverso ver que após décadas a fome é cotidiana para 33 milhões de brasileiros

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Mariana Pedron Macário

Especialista em políticas públicas e combate às desigualdades nas organizações. Mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito. Gerente de Advocacy da Ação da Cidadania

No início deste ano, uma reportagem na TV denunciou o recente agravamento da fome no Brasil. Na matéria, pessoas que viviam em insegurança alimentar em 2001 foram revisitadas, para elas o quadro de fome e miséria permanecera ou até piorara. Algumas nem puderam dar seu depoimento, porque morreram por falta de comida.

Ver que após décadas a fome é cotidiana para 33 milhões de brasileiros —de acordo com os dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan)— é muito perverso, mais ainda se consideramos que nosso país conquistou uma melhora significativa desse quadro em 2014, quando saiu do Mapa da Fome da ONU. Desde então, porém, o enfraquecimento ou extinção de políticas públicas de segurança alimentar, somada às consequências da pandemia, nos jogaram de volta a uma situação gravíssima.

Imagem fechada de uma panela vazia no chão, segurada por uma pessoa não identificada
A fome é cotidiana para 33 milhões de brasileiros, segundo os dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) - Itawi Albuquerque - 14.set.22/Folhapress

Proporcionalmente, as populações do Norte e do Nordeste são as mais atingidas. Mas em números absolutos, a região Sudeste —mais populosa do país, tem o estado de São Paulo como um triste campeão: são 6,8 milhões de pessoas famintas. O gênero também importa: 6 de cada 10 casas chefiadas por mulheres convivem com a escassez de alimentos. Nesses lares, a Rede Penssan apontou que a fome foi de 11,2% para 19,3% nos últimos anos. Nas residências em que os homens são lideranças, a fome passou de 7,0% para 11,9%. Essa diferença ocorre —também— pela diferença salarial entre os gêneros.

As crianças são as primeiras a sentirem as consequências. O Brasil não tem avançado no combate à desnutrição infantil, de acordo com um levantamento da Sociedade Brasileira de Pediatria, com base nos dados do Ministério da Saúde entre 2012 e 2022. A pesquisa mostra uma consistente alta na internação hospitalar causada pela desnutrição.

Aliás, na matéria mencionada, um dos entrevistados é o pai de uma criança que está desnutrida. O repórter pergunta para ele o que ele fará para alimentar a filha e ele então devolve com outra pergunta: o que você acha que eu devo fazer? A cena é emblemática de uma sociedade que, de uma forma ou de outra, espera que o indivíduo dê uma resposta para sua situação de fome. Ou atribui a fome a um acidente, uma fatalidade, azar, destino.

Mais se 33 milhões de pessoas passam fome, cabe perguntar à sociedade brasileira, como um todo, o que é que como país nós vamos fazer? A fome não é um acidente, ela é um projeto político. E sua erradicação também precisa ser. O compromisso de fazer com que os brasileiros comam ao menos 3 vezes ao dia foi o mote principal da eleição do atual presidente. Mas esse gigante desafio deve ser de todos nós.

Ninguém é a favor da fome, mas não mudaremos esse quadro sem combater suas causas, que são multifacetadas e enraizadas na nossa sociedade. Se indignar com a fome é necessário, mas é pouco; precisamos investir nas medidas que sabidamente combatem essa realidade. Além de inúmeras ações emergenciais que distribuem comida por todos os estados do Brasil, as organizações da sociedade civil estão intensamente dedicadas a criar, em diálogo e cooperação com o poder público, medidas estruturantes para que avancemos.

Em 2022 a Ação da Cidadania formulou a Agenda Betinho, um conjunto de propostas de políticas públicas prioritárias para enfrentamento da fome, construída com participação social. Alguns temas estratégicos que compõem a agenda: políticas de proteção social, a reinstauração do Consea, o Conselho Nacional de Alimentação —medida efetivada pelo presidente Lula— a valorização da agricultura familiar e o combate ao uso desmedido de agrotóxicos que impactam nossa saúde e o meio ambiente. Ainda, lutamos pelo investimento em cisternas e a efetivação do acesso à água, pela retomada das políticas de aquisição de alimentos e o apoio a cozinhas solidárias e uma miríade de iniciativas populares que promovem a segurança alimentar.

Destacamos ainda um dos maiores mecanismos de garantia do direito à alimentação saudável, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Graças ao trabalho de muitas pessoas e organizações, recentemente tivemos o aumento do valor destinado à alimentação nas escolas, defasados há anos. Mas precisamos de muito mais.

No Rio de Janeiro, por exemplo, a alimentação escolar é a principal refeição do dia para muitos estudantes da Região Metropolitana, mas para boa parte deles (41%) a quantidade ofertada nas escolas é insuficiente. A situação é ainda pior entre entre estudantes negros. Os dados estão na recente pesquisa "Conta Pra Gente Estudante - Grande Rio", elaborada pela Ação da Cidadania e o Observatório da Alimentação Escolar (OAE).

O Brasil sabe combater a fome. Mas o efeito só será duradouro se construído com participação popular e educação para a cidadania, somada à cooperação entre os entes sociais. É crucial unir e coordenar poder público, sociedade civil e iniciativa privada, a partir da compreensão das causas da fome e de um pacto pela sua erradicação. E caminhar sem ignorar as desigualdades —de gênero e de raça, principalmente— que agravam o contexto de alguns grupos.

A Ação da Cidadania mantém, há décadas, ações urgentes que alimentam agora quem precisa. E refazemos o chamado para que todos os setores da sociedade se juntem a nós, refundando nosso pacto social e a partir dele construindo políticas públicas apoiadas por todas as pessoas. Para que a gente saia da indignação com a fome e passe para um projeto de sociedade onde ela não exista mais. E que em alguns anos não coloquemos tudo em risco novamente.

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