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Médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”.

Paulão, o patriota

Até hoje ele não entende como tanto desejo pôde resultar num vexame

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Paulão diz que nunca sentiu tanto tesão por uma mulher.

Conheceram-se durante o estágio que ele fez no hospital da Universidade Cornell, no estado de Nova York, num jantar oferecido pelo professor do departamento de cirurgia, para os médicos que participavam de um simpósio.

Estranhou o convite: “O professor mal percebia minha existência. Não era sempre que me cumprimentava nos corredores”.

Uma vez, por ocasião de um congresso em Boston, o acaso colocou os dois sentados lado a lado, no avião.

“Ele me disse good morning, com um meio sorriso, abriu a pasta, pegou uma revista científica e passou o resto da viagem lendo e grifando o texto. Na saída, murmurou goodbye.”

Na véspera do jantar, Paulão comprou um terno azul-marinho e pagou US$ 120 por uma gravata de grife. As mangas do paletó ficaram compridas, inconveniente que a vendedora contornou com meia-dúzia de alfinetes de gancho.

Com medo de chegar atrasado, às cinco da tarde já tinha tomado banho, feito a barba pela segunda vez no dia, vestido o terno, conferido a posição dos alfinetes e acertado a simetria do laço da gravata, depois de seis tentativas.

Cinco para as oito, desceu do táxi em frente à porta art noveau do prédio da Park Avenue, no Upper East Side, reduto das famílias mais abastadas. O porteiro de luvas brancas que o recebeu verificou se o nome estava na lista e o acompanhou pelo saguão de mármore até a porta do elevador.

O papel que revestia as paredes da sala mostrava um campo coberto de relva com flores miúdas a perder de vista e um bando de pássaros no horizonte. Os sofás e as poltronas eram de veludo verde-escuro, num estilo que ele só tinha visto em museus. Todos os homens estavam de terno e gravata e as mulheres, de vestidos escuros.

Nascido e criado numa família de feirantes da Mooca, na zona leste de São Paulo, Paulão ficou pouco 
à vontade, com receio que notassem os alfinetes do paletó, naquele ambiente requintado.

Depois de cumprimentar os colegas do departamento e de ser apresentado às pessoas que não conhecia, parou numa rodinha de residentes do hospital, com os quais passava as visitas na enfermaria.

“O inglês do indonésio e do indiano não era fácil, o dos dois americanos seria, se falassem mais devagar. 
Eu concordava com tudo. Conforme a reação deles, ficava sério, sorria ou dava risada.”

De frente para a porta, diz que foi o primeiro a vê-la entrar: “Loiríssima, de cabelos soltos, vestido curto, vermelho-escarlate, agarrado no corpo, deu um sorriso na minha direção que iluminou a festa”.

Quando serviram o jantar, não pôde crer: ela veio sentar a seu lado, na mesinha junto à janela. “Quando ela chegou com o prato, meu inglês ficou melhor do que o do Brad Pitt.”

Era sobrinha do professor, dava aula de artes plásticas na Universidade Columbia, viajava e falava de si mesma, com toda desenvoltura. Nenhum interesse pela vida dele, nem quis saber de onde era, mas Paulão não deu a mínima, tinha os olhos encantados pelo azul dos dela. No dia seguinte, o coração bateu forte quando o celular chamou.

O jantar foi num restaurante japonês, no decorrer do qual ela voltou ao tema da recepção na casa do tio: ela mesma.

“Quando pedimos a conta, perguntei onde seria o próximo  encontro. Num hotel, ela respondeu. Só não caí de costas porque estava sentado. Nem tinha pegado na mão dela.”

Foram os três dias mais longos da vida do nosso conterrâneo.

Ela o recebeu na porta do quarto. Vestia um négligé de seda vermelho como vestido da festa. Na mesa, uma garrafa de champanhe, um cesto de frutas, um prato de biscoitos e outro com queijos variados. “Quando tenho orgasmos fico morta de fome”, explicou.

Advertido por um amigo que morava nos Estados Unidos de que as americanas contam a vida antes de ir para a cama, ao contrário das brasileiras, que o fazem na ordem inversa, ele conteve a ansiedade e fingiu estar diante das reflexões mais reveladoras da alma humana.

Até hoje Paulão não entende como tanto desejo pôde resultar num vexame tão retumbante. As justificativas para explicar a impotência só fizeram agravar a humilhação.

Ela foi magnânima. Em tom maternal, aconselhou-o a não ficar acabrunhado com um fato corriqueiro na vida dos homens. Foi pior, ele notou uma ponta de desprezo na fala.

Acabavam de se vestir, quando ela rompeu o silêncio constrangedor: “Where are you from?”. 

“From Argentina”, respondeu ele.

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