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Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

Descrição de chapéu

Já não se fazem mais Doris, a mulher boneca, como faziam antigamente

Décadas depois, elas abandonaram as telas e ganharam voz ativa nas redes insociais

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Com um penteado platinado estilo Bombril, Doris Day vagueia por uma cozinha americana, metida num vestido de pedras reluzentes. Doris sofre por não saber se cede, ou não, aos apelos de um homem que não vemos. Doris arfa recostada no forno de parede, abraçada a uma garrafa fálica de uísque.

A cena é de um ridículo ímpar, uma infantilização grotesca da mulher boneca que guarda a virgindade como se fosse o único tesouro que possui na vida.

E seria apenas um exemplo pífio de mau gosto, não estivesse ela inserida no extraordinário documentário sobre o racismo nos Estados Unidos, “Eu Não Sou Seu Negro”, dirigido por Rauol Peck, narrado por Samuel L. Jackson e baseado no livro inacabado do escritor James Baldwin.

O documentário entrecorta cenas chocantes da segregação racial da América nos anos 1950 e 1960, com Doris Day na Terra do Nunca do cinema.

Doris e as “strange fruits” de Billie Holiday penduradas em árvores por supremacistas brancos. Doris e Elizabeth ​Eckford, jovem estudante do Arkansas, agredida, cuspida e enxovalhada por alunos da Little Rock Central High School. Doris e os cadáveres de Martin Luther King e Malcolm X. Doris e a negação do horror.

Já não se fazem mais Doris como antigamente. Décadas depois, elas abandonaram as telas e ganharam voz ativa nas redes insociais. Aqui, a blogueira Luisa Nunes Brasil costumava dar conselhos ignóbeis sobre o chamado universo feminino às suas mais de 50 mil seguidoras.

“Vocês conseguem fazer almoço sem vontade, limpar a casa sem querer, trocar fralda e amamentar no meio da noite pigando de sono, mas não podem abrir as pernas e deixar seu marido se satisfazer das necessidades dele?”

Não satisfeita em promover a submissão no casamento, a loura oxigenada decidiu ir além, disseminando o asqueroso racismo. Amparada por supostas estatísticas, Nunes Brasil confessou considerar natural que brancos sintam medo de negros, porque os segundos cometem mais crimes do que os primeiros.

E encerrou a detestável publicação num inglês nível Wizard, exigindo que “spellem right her name”. Vou spellar, Luisa, vou spellar. Luisa Racista Nunes Azeda do Brasil De Gente Horrível Como Você. Hélio De la Peña tem razão. Estatisticamente falando, Luisa é 100% racista.

Ela e Ana Paula Henkel, hoje moradora dos Estados Unidos, contrária às manifestações de protesto pelo assassinato de George Floyd por policiais do estado de Minnesota.

A ex-jogadora de vôlei também se valeu de pseudoestatísticas para justificar o seu racismo de raiz num vago post: “12% negros, 62% dos roubos, 56% dos assassinatos, faça suas contas”. Ana Paula parece crer que a violência é um problema de cor e que a eliminação de todos os afro-descendentes da América bastaria para reduzir a criminalidade.

James Baldwin, numa de suas reflexões, fala do desejo genocida da sociedade americana de se livrar da massa de pobres negros, uma vez que sua contribuição para girar a roda da economia já não é mais necessária. Qual será a opinião de Ana Paula sobre latinos como ela?

E enquanto Nunes Brasil é expulsa do Instagram por racismo declarado e Isabel publica uma carta aberta de repúdio à ex-companheira de quadras, no Nordeste deste país escravocrata, Mirtes Renata Souza —mãe do menino Miguel Otávio Santana da Silva, de cinco anos— leva o cachorro da casa onde trabalha para passear, deixando o filho aos cuidados da patroa, Sarí Corte Real. Corte Real...

A também oxigenada mulher do prefeito da cidade de Tamandaré, Sérgio Hacker, não teve pelo menino o mesmo zelo que Mirtes dedica ao seu cachorro. Indiferente ao risco, ou ao fato de ser o adulto responsável por Miguel na ausência da mãe, Sarí apertou o botão do elevador para que a criança subisse sozinha e despencasse do edifício.

De que estatística hedionda se valeriam Brasil e Henkel para justificar o caso? A de que crianças negras são mais propensas ao suicídio? A de que mães negras se descuidam com mais frequência de seus filhos?

Como este é um caderno de cultura, sugiro aos juízes de ambos os casos, além das penas cabíveis, que incluam uma imersão educacional forçada na sentença das rés.

As Doris de ocasião, Luisa e Sarí, deveriam ser obrigadas a assistir “Eu Não Sou Seu Negro” uma vez ao dia pelo resto de suas vidas; e a decorar as 1.156 páginas do livro “Um Defeito de Cor”, de Ana Maria Gonçalves, para ter suas penas atenuadas. Quanto à Ana Paula, fica a dica.

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