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Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

Putin é a Guerra Fria em pessoa, é a Stasi do terceiro milênio, o vilão do 007

Para melhor conhecê-lo, aconselho ver o documentário 'Testemunhas de Putin', de Vitaly Mansky

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Em 2006, me alojei na pequena cidade de Santo Amaro, nos Lençóis Maranhenses, para as filmagens de “Casa de Areia”. A vida econômica da comunidade era baseada no escambo e o pouco dinheiro
que circulava provinha da aposentadoria dos idosos.

Eu posso imaginar o impacto da injeção de R$ 600 por chefe de família na região. Não à toa, Jair atingiu aprovação recorde nas pesquisas, livrando-se da responsabilidade na condução da pandemia.

Donald Trump enfrenta dificuldade maior para obter o perdão pelas quase 200 mil mortes por Covid num eleitorado acostumado ao pleno emprego.

Mas Trump e Messias são amadores se comparados a Vladmir Putin, que já garantiu o direito quase vitalício de permanecer no cargo. Enquanto Donald Duck e Zé Carioca louvam a cloroquina, o czar da KGB pula a fase três de testes da Sputnik, inocula a filha e segue firme no plano de tornar a Rússia “snova otlichno”!

Putin é a Guerra Fria em pessoa, é a Stasi do terceiro milênio, o vilão do 007 por excelência. Não bastasse o autocontrole, o nacionalismo, o calculismo e o corpo atlético, ele ainda toca piano. Vladimir é o Bolshoi, Tchaikóvski, Tolstói e o Exército Vermelho reunidos.

Para melhor conhecê-lo, aconselho ver o documentário “Testemunhas de Putin”, de Vitaly Mansky, exibido pelo Canal Brasil e disponível no Now.

As primeiras imagens que, mais tarde, dariam forma ao documentário aconteceram na tarde de 31 de dezembro de 1999, na residência do cineasta. Natalia, mulher de Mansky, e suas duas filhas se preparavam para o Ano-Novo, quando Boris Ieltsin renunciou em rede nacional de televisão.

Irritada com o marido, que insistia em filmá-la, Natalia fez um desabafo profético: o primeiro-ministro Putin, alçado à Presidência, faria o mundo temer a Rússia mais uma vez.

Como chefe do departamento de documentários do canal estatal Rússia 1, Vitaly Mansky foi convidado a registrar o presidente interino durante os seis meses que separavam a posse das eleições de 2000. O que nasceu como propaganda seria reeditado no futuro, se transformando num documento íntimo do início da escalada de poder do ex agente da KGB, então com 47 anos.

São cenas raras, como a do encontro com a professora de infância. Uma frieza incômoda marca a visita, quebrada pelo pedido do marido da ansiosa senhora para que Putin arranque as ervas daninhas do coração da pátria. “Será meu lema de governo”, garante ele, com um sorriso, até então, inexistente.

Ieltsin em casa, orgulhoso da vitória do ex-pupilo nas urnas, não consegue esconder a decepção por ele nem sequer se dignar a atender seu telefonema de congratulação.

O comitê central de campanha no aguardo da contagem dos votos. Políticos, jornalistas e estrategistas que, nos anos vindouros, acabariam mortos, difamados ou na oposição.

Mas o que impressiona à vera são os trechos em que Putin se deixa embarcar em conversas quase francas com Mansky.

Em uma sala do Kremlin, ele procura persuadir o cineasta, contrário à retomada do antigo hino soviético, banido por Ieltsin. Severo e insidioso, Vladimir insiste na necessidade de um ideal comum de nação que enalteça as trágicas conquistas, e não a vergonha cívica dos gulags.

“Seria bom que todos concordassem comigo”, diz ele. “Se pudesse, eu convenceria um a um, mas são 140 milhões de pessoas, não posso.”

E mais surpreendente ainda é a longa reflexão noturna, no interior de um carro em movimento, em que Putin, não bêbado, mas talvez desarmado pela vodca, divaga sobre sua condição de líder.

O homem criado na pobreza da União Soviética e formado nos porões da KGB é um sobrevivente da perestroika. Muitos de seus companheiros cometeram suicídio, foram
perseguidos ou acabaram no ostracismo. Ele não.

Com mãos de ferro, Putin quebrou o pacto de Ieltsin com a oligarquia; fez renascer o patriotismo, abalado desde a derrota assumida por Gorbatchov; explicitou a insignificância da Europa, quando
ela se mostrou contrária à ocupação da Crimeia; eliminou adversários e influenciou eleições ao redor do planeta.

No banco traseiro do carro, Putin admite não desejar ser rei. E revela ter estudado longamente os monarcas que conheceu, homens, segundo ele, privados da liberdade de abandonarem o posto e voltarem
a viver como seres comuns.

Dito isso, Vladimir olha a janela em silêncio.

A principal testemunha do filme é o próprio Mansky. O autoexílio na Letônia e a proibição da obra na Rússia provam o quanto é perigoso partilhar da intimidade de um homem que, sendo, não queria ser rei.

É imperdível.

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