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Repórter especial, foi diretor da Sucursal de Brasília da Folha. É autor de “Ariana”.

Crise do coronavírus precisa de coordenação, não de disputa política

Bolsonaro deveria ler exemplos de outras pragas da história antes de brincar com a Ceifadora

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A pandemia do novo coronavírus está entre nós. Como tudo o que acontece no Brasil nos últimos anos, até o novo rolê da Ceifadora foi abduzido por uma polarização política extremada e imbecil.

O exemplo mais vistoso, claro, é o já clássico episódio em que Jair Bolsonaro correu para o abraço entre os seus apoiadores, todos eivados de nobres intenções patrióticas como fechar o Congresso ou purgar o Supremo com fogo.

O presidente é irresponsável, mas o que dizer dos manifestantes? Tudo indica que eles são a franja na qual Bolsonaro está se equilibrando com um pé, enquanto o outro supõe que o uso pregresso de coturno lhe dará imunidade eterna junto aos militares no governo.

O ensurdecedor silêncio dos fardados até aqui parece falar por si. Voltando ao “povo”, aspas compulsórias, aquele que foi às ruas domingo (15) parece tomado por uma variante inversa da histeria criticada toda hora pelo presidente no tocante à lida com a crise. Agia como se não houvesse nada de estranho no ar.

Pestes e governos têm um longo histórico. No ano 165, uma virulenta praga abateu-se sobre os domínios de Roma —provavelmente varíola. Só que à frente do império estava Marco Aurélio, um dos mais celebrados líderes da história.

Ele não conseguiu debelar a histeria popular, os cristãos usados como bodes expiatórios da praga que o digam, assim como os judeus medievais durante a Peste Negra (1347-1351).

Mas tomou ações decisivas: subsidiou enterros para tirar cadáveres pobres das ruas, defendeu suas fronteiras com gladiadores quando os soldados pereciam, vendeu propriedades imperiais para custeio. A praga subsistiu, mas Marco Aurélio virou exemplo de tenacidade ao lidar com as adversidades.

Hoje, o novo coronavírus virou moeda de barganha política. Os Poderes espicaçados por Bolsonaro no domingo (15) se uniram para apoiar o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e suas propostas. É parte de disputa maior, mas uma calcada na única causa que importa agora.

Não será surpresa se Mandetta cair. Bolsonaro já o achava muito próximo de João Doria (PSDB), que governa o maior e mais afetado estado brasileiro. Agora, o vê em reuniões com seus diletos adversários da Câmara, Senado e Supremo.

O tucano paulista, presidenciável óbvio para 2022, tem tomado o cuidado de separar Mandetta de Bolsonaro na condução da crise no estado —que, ao contrário do presidente, tomou como tarefa pessoal. O mesmo tem ocorrido em outros estados, de forma algo mais atabalhoada.

Mas mesmo Bolsonaro percebeu o rumo tomado. Apesar de manter suas falas inconsequentes sobre o coronavírus, ele mandou Paulo Guedes (Economia) amarrar um pacote improvisado que, se não resolve problemas fulcrais da crise, ao menos dá uma impressão pública de ação.

Nesta terça (17), o governo russo criou um fundo específico para apoiar motoristas de aplicativo, “fre

lancers” em geral e outras pessoas que vão perder renda sem nenhum colchão de proteção. Falta pensar em algo assim, na ponta.

De todo modo, as postagens dos filhos presidenciais começaram a se transformar de ironias sobre reuniões passadas dos adversários visando provar desleixo inexistente para listagens na linha “veja o que o governo está fazendo”, chamadas para “cooperação internacional” e por aí vai.

O momento exige coordenação. Se Bolsonaro deixar Mandetta trabalhar, sua muito boa interlocução com São Paulo pode ser um modelo a seguir —ressalvando que as condições médias do sistema de saúde paulista são melhores do que aquelas registradas do Rio para cima, o que exige esforços redobrados.

Outro item indispensável é transparência. A famosa gripe espanhola de 1918-19 só ganhou esse nome porque foi na Espanha, país sem censura à imprensa por não estar na Primeira Guerra Mundial, que saíram as primeiras manchetes sobre o tema.

Nos EUA, cadáveres eram empilhados e os jornais falavam em alarmismo estimulado pelo inimigo.

A transparência acompanha também a ciência, item sem o qual não se atravessa uma emergência dessas. Um interessante estudo publicado em 2009 no prestigioso Jornal de Doenças Infecciosas Emergentes, dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA, mostra bem isso.

Um grupo de cinco pesquisadores liderados por Katerina Konstantinidou comparou as reações governamentais a surtos de peste bubônica nos séculos 17 e 18 nas ilhas então controladas por Veneza no mar Jônico e na costa grega adjacente, ora parte do Império Otomano.

Os venezianos, escaldados pela horrenda passagem da Ceifadora no século 14, que matou talvez três quintos de sua população, haviam desenvolvido as primeiras medidas sanitárias contra a doença.

Mesmo sem saber que ela era causada pelo bacilo Yersinia pestis, morador de pulgas de ratos trazidos por navios de rotas do mar Negro, Veneza intuiu que a higiene pública e a quarentena (lá inventada) podiam salvar vidas. Três séculos depois, aplicaram isso a suas ilhas, Corfu à frente, com sucesso.

Na costa logo ao lado, foram dois séculos de mortandade e pestilência, devido à má administração colonial dos otomanos. Apesar de notáveis em vários campos científicos, os sultões em Constantinopla mantinham até o fim do império em 1922 um astrólogo-chefe para ser consultado quando a coisa apertava: guerra e peste.

Claro que não estou sugerindo que o astrólogo mais famoso do bolsonarismo esteja por trás da belicosidade da seita em relação à ciência ou às reações apopléticas de um presidente isolado politicamente. Mas olhar para exemplos passados, a começar pelos desta mesma pandemia, ajudaria a melhorar a qualidade da resposta federal à crise. ​

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