Jornalista, foi correspondente da Folha em Moscou e Pequim.
Os EUA e a 'guerra civil fria'
Hiperpolarização anula passado recente de centrismo e afeta até casamentos
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Os EUA atravessam uma “guerra civil fria”, alertou, em 2019, Carl Bernstein. À época, fervia o fracassado processo de impeachment do presidente Donald Trump, e as palavras duras do célebre jornalista norte-americano ecoam com a chegada de 3 de novembro, dia da “mãe de todas as eleições”.
A hiperpolarização ideológica, filha da crise financeira de 2008/9 e alimentada por virulência abundante em redes sociais, permite a republicanos e a democratas descreverem a corrida à Casa Branca como uma “luta existencial”, com visões apocalípticas típicas dos períodos mais cinzentos da Guerra Fria, quando EUA e URSS personificavam o embate entre capitalismo e comunismo.
Os Estados Unidos já atravessaram, do ponto de vista da dinâmica de conflitos internos, momentos tão dramáticos e disruptivos como a guerra civil do século 19, o macartismo na década de 1950, o movimento pelos direitos civis e pelo fim da guerra do Vietnã dos anos 1960 e 1970.
No entanto, os 20 anos após o final da Guerra Fria testemunharam encolhimento do fosso ideológico. O momento histórico levou republicanos e democratas a posições mais centristas, com diminuição da temperatura na contenda partidária.
O colapso soviético, em 1991, remodelou o debate político, ao enfraquecer teses do “socialismo real”. Grupos à esquerda passaram a flertar com cardápios ideológicos antes rejeitados, como estímulo a aberturas comerciais e a privatizações.
A decolagem da China, com a adoção de mecanismos de economia de mercado pelo Partido Comunista, adicionou elemento fundamental para a revisão ideológica.
Líderes da social-democracia viraram o leme à direita, ao mitigar a defesa da intervenção estatal na economia e ao abraçar visões liberalizantes. A “Terceira Via” reuniu por exemplo, Tony Blair, Gerhard Schroeder e Fernando Henrique Cardoso.
Na Casa Branca, Bill Clinton (1993-2001) tornou-se ícone da guinada ao centro. Virou um democrata adorado por Wall Street.
Com medo de perder espaço, os republicanos renderam-se aos novos ventos ideológicos e passaram a enfatizar discursos sociais, antes primazia dos democratas.
Batizada de “conservadorismo com compaixão”, a retórica republicana investiu no destaque do combate à pobreza e da flexibilização de políticas migratórias. O ingrediente social impulsionou a chegada de George W. Bush (2001-2009) à Casa Branca.
Eclodiu então a crise financeira. Visões centristas começaram a ser corroídas. A era Barack Obama (2009-2016) testemunhou os primeiros sinais da “guerra civil fria”, usando a expressão de Bernstein.
Sonhando em derrotar os democratas, Donald Trump, em 2016, pisou no acelerador da hiperpolarização. E, com retórica incendiária, seduziu setores da classe média norte-americana golpeados pela perda de empregos e de renda para a Ásia, transformados então em inimigos da globalização e em militantes da onda nacionalista e trumpista.
Joe Biden, um centrista, adotou plataforma mais à esquerda, em comparação com os tempos de Obama. Precisou sedimentar apoio de alas dogmáticas.
O drama norte-americano contamina também aspectos prosaicos do cotidiano. Pesquisa publicada no ano passado pela Atlantic evidenciou a hiperpolarização envenenando casamentos.
Em 1960, menos de 5% de democratas e de republicanos se diziam infelizes com a ideia de filhos casando-se com alguém do outro campo partidário. O índice subiu para 35% entre republicanos e 45% entre democratas.
Trata-se de um triste sinal da “guerra civil fria”. Afinal, é melhor acreditar no amor do que na infalibilidade de cartilhas ideológicas.
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