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Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

Histórias da carochinha

Chances de constantemente escutarmos bosta sobre a felicidade são elevadíssimas

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Tudo aquilo que você imagina saber sobre a felicidade está errado. Pelo menos, Paul Dolan pensa que sim. Quem é Dolan? Desconhecia o personagem. Agora, dificilmente o esquecerei.

Paul Dolan, professor de ciências comportamentais na London School of Economics, leu todos os estudos possíveis sobre a "economia da felicidade".

Depois, com graça (muita) e perversão (muitíssima), começa a demolir as nossas ideias feitas sobre a matéria. O objeto do crime dá pelo nome de "Happy Ever After: Escaping the Myth of the Perfect Life".

Minto. O problema não são as nossas "ideias feitas". São as "narrativas sociais", explica Dolan. Você sabe, aquelas prescrições que abundam por aí, proferidas por familiares e colegas e revistas de lifestyle, sobre o que as pessoas devem querer ("casar e ter filhos"), fazer ("profissões com salários milionários"), pensar ("tudo está nas nossas mãos") ou sentir ("a monogamia é sagrada"). As chances de estarmos constantemente a escutar bosta são elevadíssimas. Quer um exemplo?

"Riqueza é felicidade." Não é, não. Pobreza é infelicidade. Mas, assim que as nossas necessidades básicas estão satisfeitas, o desejo por mais dinheiro gera quantidades cada vez mais diminutas de felicidade.

O objetivo, segundo a evidência empírica, não está em querer a Lua. Mas em habitar o planeta do "just enough" —qualquer coisa como US$ 50 a 75 mil por ano, pelo menos nos Estados Unidos. Quem habita esse planeta reporta um nível de satisfação com a vida muito superior a quem recebe, por exemplo, US$ 100 mil por ano.

O mesmo vale para profissões com "status" social. Não se engane. Sim, o desemprego é uma chaga na nossa felicidade. Pior: é uma chaga que nunca verdadeiramente cicatriza, nem mesmo quando voltamos a ter trabalho.

De igual forma, em países onde o índice de desemprego é elevado, isso atinge até os níveis de satisfação daqueles que têm emprego. ("Nenhum homem é uma ilha", já dizia o poeta.)

Mas, quando investigamos quais as profissões que reportam maior felicidade, encontramos padres, agricultores e instrutores de fitness. Ou então floristas, que em todos os estudos apresentam índices de felicidade muito superiores aos dos advogados.

E, sobre a educação, a utopia de um "país de doutores" ignora o básico: você sabia que, quanto mais educada é uma pessoa, mais infeliz ela será? Ou, inversamente, quem tem o ensino médio é mais feliz que um licenciado; e um licenciado é mais feliz que um doutorado.

Só existe um exceção curricular: quem faz mestrado reporta níveis de felicidade superiores a um licenciado ou doutorado. Dolan não encontra explicação para o fenômeno. Nem eu: passei diretamente da licenciatura para o doutoramento, ou seja, da infelicidade para a miséria.

Mas é nas relações pessoais que o livro de Dolan rebenta com várias cabeças. "Você tem de casar", diz a mãe para a filha. Depende das expectativas. O "amor passional" desaparece em dois anos, altura em que o "amor companheiro" entra em cena. Casar, só se você estiver disposto a essa troca.

De resto, em termos de satisfação com a vida, solteiros, casados e divorciados ocupam o mesmo patamar de felicidade. Pior: pessoas que nunca casaram são mais felizes do que divorciados ou separados. (Bye-bye clichê sentimental de que "mais vale ter amado e perdido do que nunca ter amado na vida").

Fato: os casados tendem a ser mais saudáveis. Mas há variações importantes: os homens se beneficiam mais desse efeito do que as mulheres.

Aliás, mulheres de meia-idade casadas tendem a ser mais doentes —física e psicologicamente— do que mulheres de meia-idade solteiras. Talvez porque casamentos problemáticos atingem mais profundamente as mulheres do que os homens, embora elas se aguentem melhor ao divórcio do que eles. Moral da história?

Se o casamento fosse um jogo, as mulheres teriam mais a perder do que os homens (engraçado: e são elas, ironicamente, que sofrem maiores pressões para casar). Até a qualidade do sono piora para as donzelas. (Sim, querida, podes marcar consulta no otorrino; não posso ser tão egoísta.)

Tudo isso significa que Paul Dolan aconselha o contrário das "narrativas sociais"? Longe disso. Dolan, casado e pai de dois filhos, admite perfeitamente que é possível ser feliz com uma conta bancária na estratosfera, um pós-doutorado em física quântica e um casamento que rola há 50 anos.

O conselho dele é outro: as vidas felizes não dependem de "narrativas sociais" perfeitas, que muitas vezes são a razão principal de muitas infelicidades. A experiência individual é tudo: como ele escreve, as experiências são mais importantes do que as histórias que contamos sobre elas.

Aliás, eu diria mais: em muitos casos, só contamos histórias da carochinha para iludir os outros —e nos iludirmos a nós. Mas isso já seria assunto para um livro ainda mais perverso.

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