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Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

Um samurai nas alturas

Nem tudo que interessa na vida é sobreviver e passar os genes

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É a pergunta que vale 1 milhão de dólares: se tudo aquilo que interessa à espécie humana é sobreviver e passar os genes, como explicar que alguém queira escalar uma rocha gigante, sem equipamento de segurança, sabendo que um gesto em falso significa a morte?

Deixo a pergunta para os darwinistas de carteirinha. Ou, então, aconselho à mesma turma o documentário “Free Solo”, que venceu o Oscar esse ano.

A obra é, artisticamente falando, banalíssima. Mas não são as qualidades estéticas do documentário que interessam. O que interessa é o personagem principal —Alex Honnold, um alpinista que partilha com a câmera o seu projeto de vida.

Esse projeto consiste em escalar o paredão do El Capitán, um rochedo com 975 metros que fica no Parque Natural de Yosemite, na Califórnia. Alex já escalou o bicho várias vezes com o equipamento de segurança. E várias vezes falhou a empreitada. Como garantir que, sem cordas, sem paraquedas, sem nada, a história será diferente? E como explicar o demencial otimismo do rapaz?

Os médicos diriam que existe algo de errado com Alex. O próprio, aliás, submete-se a uma ressonância magnética, só para conhecer melhor a qualidade da sua massa encefálica.

É verdade: a amígdala não tem atividade “normal”. E a mãe, a certa altura, sugere um síndrome de Asperger nunca devidamente diagnosticado.

Em qualquer dos casos, e atendendo ao discurso de Alex, as explicações científicas não são satisfatórias. Mas entendo a necessidade de as ensaiar: se aquilo não é doença, é o quê?

A essa eu respondo: é obsessão; desafio; coragem. E arte, muita arte: quando acompanhamos Alex nos seus ensaios, percebemos que a escalada em “free solo” tem tanto de esforço como de rigor técnico. Se o rapaz não estivesse naquela rocha, diríamos que era bailarino, a ensaiar um “rond de jambe”. A única diferença é que ninguém morre no balé por uma rotação em falso.

“Free Solo” é esse retrato de bravura anacrônica. E digo “anacrônica” porque nada está mais afastado do espírito do tempo do que o descaso com que Alex fala da vida.

A certa altura, mais por brincadeira do que outra coisa, ele apresenta-se como um samurai. Boa comparação. Porque ele é um samurai: na solidão; nos gestos e rituais; mas também na subvalorização da morte —a morte dos amigos alpinistas, que mais do que uma vez tomam conta do écran; e a sua própria morte, que é sempre uma questão de centímetros.

Regresso ao início:  se tudo aquilo que interessa à espécie humana é sobreviver e passar os genes, como explicar que alguém queira escalar uma rocha gigante, sem equipamento de segurança, sabendo que um gesto em falso significa a morte?

A resposta está já contida na pergunta: pelos vistos, quando falamos de seres humanos, nem tudo que interessa é sobreviver e passar os genes. A bravura; a busca do belo e da verdade; o sacrifício por um bem maior —somos animais, sem dúvida, mas animais estranhos e fascinantes.

O principal mérito de “Free Solo” é simplesmente lembrar-nos disso.

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