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Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

Talvez seja melhor reconhecer as mentiras das nossas histórias

Para Nietzsche, mentir tem algo de inconsciente, como um mecanismo de autopreservação

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Os antigos diziam que jamais poderíamos contemplar diretamente a face divina. Assim, na Bíblia Hebraica, Deus teria dito a Moisés: “Não poderás ver o meu rosto, pois não poderá ver-me o homem e viver” (Êxodo, 33:20).

Penso, muitas vezes, que essa passagem expresse o nosso relacionamento com a verdade. Afinal, o que seria do ser humano se a ele fosse dada a possibilidade de confrontar-se com a mais pura realidade sobre si próprio? Será que preferiríamos a cegueira, ao exemplo de Édipo, ou será que enlouqueceríamos, tal a personagem vivida por Harriet Andersson em “Através de um Espelho” (Ingmar Bergman, 1961)?

Difícil opinar. No entanto, quanto mais grave a verdade sobre um homem, mais ele parece esquivar-se de apreendê-la. É assim, por exemplo, que ao explorarmos certas lembranças de eventos traumáticos, ficamos agitados, bocejamos e, até mesmo, corremos o risco de cair no sono durante uma consulta ao psicanalista. Sintomas de que os mecanismos de defesa do ego estariam em plena atividade.

Em uma das muitas histórias colecionadas pela pesquisadora Beatrice Silverman Weinreich em "Yiddish Folktales" (1988), o rabino Elijah ben Solomon Zalman (1720-1797), Gaon de Vilna, questiona o "maggid" de Dubno, Jacob ben Wolf Kranz (1740-1804), do motivo pelo qual a contação de histórias aparenta surtir maior efeito nos homens que a simples e direta transmissão da verdade:

“Ajude-me a entender. O que faz da parábola algo de tão influente? Ao recitar a Torah, eu quase não tenho audiência, mas, se conto uma história, a sinagoga logo enche-se de gente. Por que isto?”.

Na tradição judaica o "maggid" é uma espécie de pregador quase sempre itinerante, experiente contador de “causos” inspirados no folclore, em textos bíblicos e em comentários rabínicos. Deste modo, o "maggid" de Dubno opta por responder ao colega com uma breve narrativa na qual, certa vez, a Verdade e a Parábola se encontraram.

Naquela ocasião, a Verdade estava nua e cabisbaixa, ao passo que a Parábola caminhava em todo o seu esplendor; vestida à última moda e penteada com muito esmero. Ciente de que havia algo de errado com a amiga, a Parábola insistiu em saber do que se passava. A Verdade, então, confidenciou-lhe que todos temiam a sua aparência e que ninguém a deixava frequentar as suas casas.

Surpresa com a ingenuidade da Verdade, a Parábola criticou a aparência desleixada da amiga, aconselhando-a: “Deixe-me contar um segredo. Nesta vida todos gostam de adornos e disfarces. Tome emprestada uma das minhas roupas e veja como você passará a ser benquista em todos os lugares”. Dito e feito, conclui o "maggid". Daquele dia em diante, a Verdade e a Parábola tornaram-se companheiras inseparáveis.

Em vários momentos da sua obra, como na citação abaixo —retirada de “Sobre a Verdade e a Mentira no Sentido Extra-Moral” (escrito em 1873)— Friedrich Nietzsche aborda a relação entre a verdade e o artifício na experiência humana:

“Como um meio para a conservação do indivíduo, o intelecto desenrola suas principais forças de dissimulação [...]. O que sabe o homem, de fato, sobre si mesmo! Seria ele sequer capaz, em algum momento, de perceber-se inteiramente, como se estivesse numa iluminada cabine de vidro?”.

Anos mais tarde, em “Além do Bem e do Mal: Prelúdio de uma Filosofia do Futuro” (1886), Nietzsche volta a comentar a problemática relação do homem com a verdade para lançar a seguinte provocação:

“Mesmo nas vivências mais incomuns, agimos assim: fantasiamos a maior parte da vivência e dificilmente somos capazes de não a contemplar como ‘inventores’ de algum evento. Tudo isto quer dizer que nós somos, até a medula e desde o começo — habituados a mentir. Ou para expressá-lo de modo mais virtuoso e hipócrita; em suma, mais agradável: somos muito mais artistas do que pensamos”.

Enquanto caracterizamos a mentira como a inclinação de conscientemente enganarmos o próximo no intuito de obtermos alguma vantagem, o que mais chama atenção nessas e em outras passagens da obra de Nietzsche é a maneira pela qual o filósofo trata da mentira como algo muitas vezes inconsciente, ao exemplo de um reflexo involuntário ou de um mecanismo de autopreservação, como quem leva as mãos aos olhos para protegê-los do sol durante uma caminhada na praia. Algo semelhante ao que teria acontecido a Moisés quando este cobriu o rosto ao deparar-se pela primeira vez com presença do Deus dos seus antepassados (Êxodo, 3:6).

O livro de Êxodo e o personagem de Moisés impõe-nos uma série de fascinantes quebra-cabeças, a servir-nos inclusive de alerta para todos aqueles que buscam, sofregamente, pela mais absoluta verdade sobre si a partir de uma investigação da própria ancestralidade. Afinal, se nem uma figura sagrada, como Moisés, livrou-se do questionamento por Freud, o que dizer de nós mesmos, mulheres e homens condenados ao anonimato da história?

Há um motivo inconsciente pelo qual embelezamos o passado, oferecendo aos nossos antepassados virtudes que eles nunca, jamais, teriam sido capazes de tomar para si. Eu duvido muito que sobreviveríamos ao conhecimento da violência à qual eles estavam habituados. Assim, torna a dizer-nos Nietzsche em “Sobre a Verdade e a Mentira” (1873):

“Apenas por que o homem se esquece enquanto sujeito e, com efeito, enquanto sujeito artisticamente criador, ele vive com certa tranquilidade, com alguma segurança e consequência; se pudesse sair apenas por alguns instantes das redomas aprisionadoras dessa crença, então a sua ‘autoconsciência’ desapareceria de imediato”.

Faz muito tempo conheci um homem extremamente angustiado em forjar o mais coerente, claro e distinto relato sobre as próprias origens, como se ele habitasse a cabine de vidro descrita por Nietzsche alguns parágrafos acima. Ainda hoje, embora não tenhamos mais contato, recebo notícias da sua fantástica empreitada e aprendo um pouco mais sobre a sua vida. Quando isso acontece, penso apenas no quanto ele não deve sofrer!

Se a mim fosse dada a oportunidade de lhe ofertar um conselho, diria que somos todos um pouco como o próprio Moisés —meio hebreus, meio egípcios— e que talvez seja-nos mais interessante reconhecermos o que há de artifício, incoerência e imperfeição nas nossas próprias histórias. Ora, certo estava o "maggid" que nos introduzia à verdade aos poucos, deixando espaço para que a imaginação também cumprisse o seu trabalho.

*

Para o meu amigo Thiago Blumenthal Z”L, com quem eu compartilhei tantas reflexões ao longo dos anos.

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