Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Juliana de Albuquerque

Leitor do mundo, Nietzsche reinterpretou principais obras da cultura ocidental

Filósofo chama nossa atenção para maus hábitos de leitura relacionados ao imediatismo

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Na adolescência, uma das coisas que mais me chamou a atenção para a obra de Friedrich Nietzsche (1844-1900) foi o seu cuidado no emprego das palavras. Embora eu ainda não dominasse as ferramentas para compreender muito do contexto intelectual em que o filósofo desenvolvera as suas ideias, guardei comigo algumas impressões que até hoje informam a minha escrita e, principalmente, o meu hábito de leitura.

A principal sensação que tive ao ler Nietzsche pela primeira vez foi a de que suas palavras só poderiam ter sido escritas por um grande leitor. Ou seja, por alguém cuja atenção ao texto colocava-o em condições de debater com outros autores em pé de igualdade.

Ainda que em “Ecce Homo” (1888) Nietzsche critique a bibliomania, os seus próprios textos revelam a intensidade do seu hábito de leitura, a abarcar outros filósofos contemporâneos ou não, como, também, escritores de uma ponta a outra do cânone, tal os autores do Velho Testamento, Sófocles, Platão, o apóstolo Paulo, Montaigne, Shakespeare, Goethe, Heine, Stendhal, Emerson, Dostoiévski etc...

Dando-nos a impressão de que a literatura e a filosofia sempre estiveram intimamente relacionadas no seu pensamento. Em verdade, pode-se mesmo dizer que, em sua obra, Nietzsche incorpora e reinterpreta todas as principais obras da cultura ocidental.

Em artigo para o Journal of the History of Ideas, Thomas H. Brobjer comenta os hábitos de leitura de Nietzsche durante os seus últimos anos de atividade. Segundo o pesquisador, ele fora um grande frequentador de bibliotecas, havendo a qualidade desses ambientes de pesquisa determinado o roteiro das suas viagens. Assim, durante esse período, o filósofo trabalhou nas bibliotecas de Nice, Leipzig, Chur, Veneza, Turim, além de frequentar a biblioteca do hotel Alpenrose em Sils-Maria.

Apesar do pouco dinheiro de que dispunha —pois ao contrário do que pensa o ministro Paulo Guedes, a elite que consome livros nem sempre é a mesma que sabe fazer dinheiro— Nietzsche beneficiou-se da compra de vários títulos, manteve contato com livreiros e, como qualquer um de nós, descobriu alguns autores, como Dostoiévski, durante uma visita casual a uma livraria.

Portanto, não surpreende que, enquanto filósofo, Nietzsche tenha refletido sobre a leitura, ao exemplo desta célebre passagem de “O Anticristo” (1888) em que ele caracteriza a sua principal área de formação —a filologia— como a arte de ler bem, ou seja:

“De ser capaz de ler fatos sem falseá-los com interpretação, sem perder a cautela, paciência, a finura, no anseio de compreensão. Filologia como ephexis na interpretação: seja com livros, notícias de jornal, destinos ou dados meteorológicos — sem falar da ‘salvação da alma'”.

Como bem explica Jessica N. Berry, autora de “Nietzsche and the Ancient Skeptical Tradition” (Nietzsche e a antiga tradição cética, 2011), a palavra grega "ephexis" pode ser entendida como “uma parada ou verificação.” Esse termo encontra o seu uso relacionado ao ceticismo pirrônico, servindo de base para o conceito de "epochē" ou suspensão de julgamento. Neste diapasão, cumpre ressaltar a mensagem de Nietzsche no prefácio de “Aurora — Reflexões sobre os Preconceitos Morais” (1881):

“Pois filologia é a venerável arte que exige de seus cultores uma coisa acima de tudo: pôr-se de lado, dar-se tempo, ficar silencioso, ficar lento — como uma ourivesaria e saber da palavra, que tem trabalho sutil e cuidadoso a realizar, e nada consegue se não for lento. Justamente por isso ela é hoje mais necessária do que nunca, justamente por isso ela nos atrai e encanta mais, em meio a uma época de “trabalho”, isto é, de pressa, de indecorosa e suada sofreguidão, que tudo quer logo “terminar”, também todo livro antigo ou novo: — ela própria não termina facilmente com algo, ela ensina a ler bem, ou seja, lenta e profundamente, olhando para trás e para diante, com segundas intenções, com as portas abertas, com dedos e olhos delicados...”

Ao embasar a boa leitura no exercício da suspensão de julgamento —não a supressão, como bem nos adverte o sociólogo Frank Furedi em sua crítica à contemporaneidade— Nietzsche nos chama atenção para o fato de que tal exercício é essencial à nossa compreensão do perspectivismo, ou seja, da possibilidade de lermos o mundo, os livros e as pessoas através de múltiplos aspectos; permitindo-nos não somente perceber de onde fala cada pessoa como, também, a nos conceder oportunidade de estudar as suas motivações. Ora, adverte-nos o filósofo em “Além do Bem e do Mal — Prelúdio a uma Filosofia do Futuro” (1886):

“Com os nossos princípios queremos tiranizar, justificar, honrar, insultar ou esconder os nossos hábitos — dois homens com os mesmos princípios querem provavelmente algo profundamente diverso".

Este talvez seja um dos principais ensinamentos de Nietzsche para a nossa época, justamente em um momento em que aparentamos estar atolados em um verdadeiro lamaçal de mensagens e informações, a mercê de um mutirão de intérpretes da realidade. Afinal, o que será que intentam aqueles que aparentam dizer tudo o que desejamos escutar?

Em nosso cotidiano, julgamos apressadamente toda e qualquer informação que nos chega. Desse modo, esquecemo-nos de que nem todo evento, notícia ou leitura exige de nós uma reação incontinenti. Para Nietzsche, a imediatez das nossas reações caracteriza a má leitura, a comprometer e falsear a nossa interpretação dos livros e da própria vida.

O filósofo também chama a nossa atenção para outros maus hábitos de leitura relacionados ao imediatismo, ao exemplo da facilidade com que nos deixamos levar preguiçosamente pelo pensamento alheio ao ponto de dispensarmos todo e qualquer questionamento, como se já não nos interessasse a manutenção e o exercício da nossa própria autonomia.

Neste sentido, talvez, a mensagem de Nietzsche não esteja assim tão distante do alerta de Immanuel Kant em texto sobre o esclarecimento, em que o pensador do Iluminismo alemão acusa a grande maioria dos homens de inércia e covardia por se submeterem de bom grado à tutela do pensamento:

“Possuo um livro que faz às vezes do meu entendimento; um guru espiritual, que faz às vezes da minha consciência [...] assim não preciso eu mesmo dispender nenhum esforço. Não preciso necessariamente de pensar, se posso apenas pagar; outros se incumbirão por mim desta aborrecida ocupação”.

Tela de Gottlieb Doebler retrata o filósofo Immanuel Kant - Kirsten Neumann - 23.nov.2010/AFP

Neste 25 de agosto, ao celebrarmos 120 anos da morte de Nietzsche, pergunto-me se ainda levará tempo até que finalmente consigamos incorporar a sua mensagem de que é preciso ter coragem para persistirmos na busca pelo conhecimento.

Finalmente, para o filósofo, essa coragem envolve o compromisso com a dúvida e a habilidade de procedermos uma leitura de mundo; capazes de suportarmos ataques às nossas convicções.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.