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Professora da USP, jornalista e psicóloga, é autora de "Atletas Olímpicos Brasileiros"

Mudar corpo de Semenya de forma unilateral é um ato de violência

Caso envolvendo atleta mostra que esporte é binário e tem referência masculina

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Katia Rubio

Em tempos de terra plana há ainda quem considere que a mulher é um ser secundário que nasceu de uma costela de um homem criado a partir de um sopro no barro. Imaginário criacionista à parte, é curioso observar como cientistas reproduzem teses de exclusão não muito distintas de um dos mitos da criação. Ou seja, a referência para o mundo é masculina. E para as mulheres cabe apenas uma adequação, estilo estica e puxa, para caber nos modelos existentes.

Não vou nem entrar no mérito das teorias sobre a inveja peniana e que a construção da psique feminina é apenas pautada no que lhe falta, claro, tendo o homem como referência. E assim o universo caminhou por séculos, ou homem, ou mulher. O diferente disso precisou de milênios para se afirmar como uma condição.

A atleta sul-africana Caster Semenya comemora vitória na final dos 800 m nos Jogos da Comunidade Britânica - Athit Perawongmetha - 13.abr.2018/Reuters

O esporte nasceu binário, ou melhor, único. Isso porque, é sempre bom lembrar, que a primeira edição dos Jogos Olímpicos foi exclusiva de seu inventor, o homem. Às mulheres foi destinada a arquibancada.

Por mais que houvesse conquistas femininas no último século a referência de empoderamento para as mulheres ainda permaneceu masculina. Marcas, medidas, tempos e padrões foram criados ou estabelecidos a partir de um a priori com o respaldo de achados ou produções da ciência, atividade essa não menos falocêntrica, uma das formas culturais no mundo contemporâneo.

O caso Semenya mostra isso. Não basta que ela seja mulher e, naturalmente, tenha uma fisiologia diferente da média. Ela tem que ser a mulher possível para o esporte. Para isso deve se provar como tal a partir de uma referência denominada nanomol, medida criada com a finalidade de determinar a quantidade de testosterona —hormônio tido como responsável pela macheza masculina, porém presente também nos corpos femininos— possível nas mulheres atletas.

Vale lembrar que se provar mulher para as cortes esportivas não é fato novo. Essa história se repete nas últimas décadas com nomes e metodologias distintas, expondo atletas cuja fisiologia se distingue da maioria. Mas, o que é o atleta de nível olímpico senão um ser humano fora da média? Nas arenas esportivas isso é mostrado e provado a cada competição. Porém, não para as mulheres.

Atletas como Usain Bolt e Michael Phelps, seres humanos fora da média, não precisam de algum tipo de nanomol para determinar sua potência fisiológica que desencadeou performances extraordinárias. Sim, porque eles são homens, e para os homens o universo é ilimitado nas pistas, piscinas e quadras.

Semenya tem que se sujeitar às determinações de uma corte com poder de determinar as marcas, as medidas, as médias e os padrões que afirma ou nega a sua condição de mulher atleta com base naquilo que seu corpo produz. No binarismo que ainda persiste nas instituições esportivas é preciso entrar em uma das duas portas abertas para as competições e caber dentro de duas possíveis caixas já existentes.

Pouco importa a violência a que estão sujeitos todas aquelas e todos aqueles que não se identificam com os padrões estabelecidos. Pouco importa todos os avanços que aconteceram nesse diminuto planeta habitado por arrogantes seres que ainda acreditam serem eles o centro do universo.

Como escreveu Contardo Calligaris na última quinta (9), é preciso acabar com as ideologias de gênero, uma vez que essa é uma questão complexa e séria demais para ser tratada por ideólogos. A dimensão do humano está para além disso.

Qualquer ação para mudar o corpo de Semenya, ou de outra mulher, para atender a padrões impostos, de forma unilateral seria um ato de violência.

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