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Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.

Sonhos para a criatividade, as lições dos narcolépticos

São necessários muitos períodos em sono REM para que a imaginação ganhe destaque

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O químico August Kekulé certa vez, em 1865, teria sonhado uma cobra engolindo a própria cauda, a forma da serpente autofágica inspirou-o a deduzir a estrutura química do benzeno, uma grande descoberta para a química orgânica.

Poucos anos depois, em 1869, outro célebre cientista, Dmitri Mendeleev, fora dormir mais uma vez frustrado após tentativas malsucedidas de classificar os átomos. Porém, a noite foi venturosa, o pesquisador sonhou elementos químicos se encaixando ordenadamente em uma tabela. Acordado, Mendeleev teria composto, de uma vez, toda a tabela periódica dos elementos químicos.

Intrigantes, reveladores, entretanto estes casos estão cheios de exageros. Kekulé mencionou, pela primeira vez, seu sonho reptiliano 28 anos após a sua descrição do anel benzênico, ao ser pressionado a apresentar por escrito a argumentação que outrora anunciou sua descoberta. Especula-se que, durante este longo período, teve tempo para criar uma história para omitir a real inspiração, até hoje misteriosa, para sua descoberta. E Mendeleev, após um sonho, fez apenas alguns ajustes em sua tabela já quase completa.

Mulher dorme abraçada a um travesseiro - Africa Studio - stock.adobe.com

A despeito de tantas controvérsias, estes contos continuam recontados e, até mesmo, citados em algumas revistas científicas importantes. Provavelmente, são aceitas piamente por atenderem a um desejo antigo humano, de conceder significados aos sonhos e por indicarem algum propósito pré-consciente aos fenômenos oníricos.

Além disso, abrigam a sedutora ideia de que ciência não se move apenas por esforço positivista e racional, mas também por lampejos de alta criatividade. Estes relatos soam verossímeis pois acordam com nossas experiências pessoais. É possível que quase todos nós, que seguiremos anônimos na história, já escutamos algum exemplo de uma boa ideia clarificada por um sonho. Mas esse tipo de conversa não é ciência.

Porém, há sólidas evidências e, não apenas causos, que conectam sonhos à criatividade. Estudos apontam que as pessoas que mais se recordam dos sonhos são mais criativas, também são as que rememoram os mais complexos. Uma pesquisa antiga, conduzida pela professora de psicologia da Universidade Havard Deirdre Barrett, confirmou que sonhar com um problema auxilia, frequentemente, a encontrar alguma solução prática.

A explicação para isto está em uma fase do sono em que os sonhos são mais abundantes e absurdos. Nesta etapa, os olhos se movimentam erroneamente, acelerados e, por esta característica, tem o nome de sono REM (do inglês Rapid Eye Movement: movimentos rápidos dos olhos). Ao que parece, os fenômenos oníricos deste período fundem traços de memórias em consolidação, com recordações mais antigas e já bem estabelecidas, de maneira caótica, original e abstrata. A junção entre elementos das lembranças de fatos mais recentes com os de acontecimentos antigos gera padrões experienciais complexos, uma simulação da realidade. Este trabalho reorganiza sinapses cerebrais a facilitar associações de ideias, um favor para a criatividade.

Não quero dizer, meu querido leitor, que seus problemas acabaram, pois não basta um belo sono REM para seus bloqueios criativos desaparecerem. São necessários muitos períodos em sono REM para que sua criatividade ganhe algum destaque, algo não muito viável, a menos que você esteja em grave privação de sono, e possa mudar esta condição.

Mas existe um grupo de pessoas, raras, que entram em sono REM com a maior facilidade, inclusive à luz do sol, muitas vezes ao dia, independentemente de quantas horas já dormiram. Estes indivíduos possuem uma doença incomum chamada narcolepsia, que provoca extrema sonolência. Os narcolépticos são mais criativos do que nós humanos medianos, como dois recentes estudos atestam. Esta constatação favorece a teoria de que sono REM, logo, os sonhos, favorece a criatividade.

Referências:

D’Anselmo, Anita, Sergio Agnoli, Marco Filardi, Fabio Pizza, Serena Mastria, Giovanni Emanuele Corazza, e Giuseppe Plazzi. “Creativity in Narcolepsy Type 1: The Role of Dissociated REM Sleep Manifestations”. Nature and Science of Sleep 12 : 1191–1200. https://doi.org/10.2147/NSS.S277647.

Lacaux, Célia, Charlotte Izabelle, Giulio Santantonio, Laure De Villèle, Johanna Frain, Todd Lubart, Fabio Pizza, Giuseppe Plazzi, Isabelle Arnulf, e Delphine Oudiette. “Increased Creative Thinking in Narcolepsy”. Brain: A Journal of Neurology 142, no 7 : 1988–99. https://doi.org/10.1093/brain/awz137.

Barrett, Deirdre. “The ‘committee of sleep’: A study of dream incubation for problem solving”. Dreaming 3, no 2 (1993): 115–22. https://doi.org/10.1037/h0094375.

Baylor, George W. “What Do We Really Know About Mendeleev’s Dream of the Periodic Table? A Note on Dreams of Scientific Problem Solving”. Dreaming 11, no 2 : 89–92. https://doi.org/10.1023/A:1009484504919.

“Preconscious Mental Activity and Scientific Problem-Solving: A Critique of the Kekulé Dream Controversy. - PsycNET”. https://psycnet.apa.org/doiLanding?doi=10.1037%2Fh0094386.

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