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Escritor e ensaísta, autor de "Notas sobre a Esperança e o Desespero" e “A Era do Niilismo”. É doutor em filosofia pela USP.

O pessimismo é o modo mais racional de ver o mundo

O grande dano causado pelo projeto demoníaco é a perda da esperança

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Há duas semanas —3 de abril—, disse nesta coluna que o pessimismo era um pecado diante de Deus. Perguntaram-me o porquê. Acho que essa pergunta merece uma resposta atenta.

O pessimismo é o modo mais racional de ver o mundo. O otimismo —afora o otimismo vagabundo do capitalismo, do marketing e da prática motivacional— exige quase um milagre. Não é por acaso que no cristianismo a esperança é vista como uma virtude teologal —para tê-la dependemos da graça de Deus.

O pessimismo já apareceu de várias formas na filosofia ou mesmo nas religiões. A tradição trágica é um bastião desse pessimismo espiritual. Os gnósticos do início do cristianismo afirmavam que o mundo teria sido criado por um deus mau e que a criação era uma câmara de torturas. Fácil enxergar razoabilidade nessa teoria.

Grandes filósofos, como Schopenhauer (1788-1860), afirmavam que o mundo —e tudo dentro dele— era fruto de uma vontade perversa e cega. Freud (1856-1939) chegou perto do mesmo diagnóstico. O existencialismo quase todo foi uma forma chique e descolada de pessimismo. Os exemplos se multiplicam.

No dia a dia, tomado pela labuta, pela estupidez, pela histeria contemporânea, é fácil se contaminar pela desesperança. Mas por que ele seria um pecado diante de Deus? De cara, podemos lembrar quando, no livro do Gênesis, Deus olha para sua criação e diz que ela é boa. Mas a coisa não para aí.

Na reflexão cristã medieval, autores como São Tomás de Aquino (1225-1274) já haviam identificado a tristeza profunda como um pecado, resultado da captura do coração —órgão da vontade para muitos filósofos medievais— pelo pessimismo demoníaco.

Essa contaminação do coração pela negatividade demoníaca faria com que a pessoa perdesse a esperança de que a vida e o mundo valiam a pena. Do ponto de vista teológico de então, o projeto negativo do demônio era, justamente, retirar a capacidade de a criação de Deus funcionar através da paralisação da ação do homem, protagonista da criação.

A tristeza profunda seria, então, o motor dessa negatividade na vida.

Ilustração de Ricardo Cammarota para versão online da coluna de Luiz Felipe Pondé de 16.abr.23 - Ricardo Cammarota

O grande dano desse projeto demoníaco seria a perda da esperança. E como é possível viver sem esperança? Ou, dito de outra forma: pode-se viver o dia a dia sem alguma forma de investimento na vida ou nalgumas pessoas a sua volta?

Para além da teoria medieval sobre o pessimismo e o coração imobilizado por ele, uma das forças do pessimismo está no fato de ele poder ser alimentado pelo ceticismo mais sofisticado. Toda vez que você quiser ter a chance de acertar uma previsão sobre o mundo, aposte no pior. A chance de você acertar é enorme.

Outra força do pessimismo é que seu oposto, o otimismo, hoje em dia é quase absolutamente idiota e barato como perspectiva. Quase infantil. A grande justificativa desse otimismo barato de agora é o fato de que o desespero nunca esteve tão em alta, ao contrário do que está em voga dizer.

Albert Camus (1913-1960), filósofo argelino-francês, ele mesmo um pessimista trágico, parece-me, acertou quando disse que a esperança só é possível quando atravessada pela humildade. Humildade é uma virtude difícil, principalmente em nossa época, que é atravessada pelo orgulho e pela boçalidade como virtudes cantadas em prosa e verso.

A humildade abre o coração para o reconhecimento de que nunca sabemos com certeza o que está acontecendo, seja na nossa vida, seja no universo. No coração do pessimismo reside o orgulho de supor ter compreendido todo o enredo das coisas. O pessimismo é o caminho mais curto entre dois pontos na vida.

Decorre dessa identidade camusiana entre esperança e humildade o fato de que toda esperança calcada no orgulho tem perna curta, porque a vida é uma máquina de moer todos os seres vivos. E os orgulhosos morrem mal.

Camus era um ateu convicto. Surpreende o fato de que, muitas vezes, ateus parecem entender melhor Deus do que os crentes, ávidos por reforçar seus postulados de salvação. A cegueira diante de Deus —o ateísmo em si— talvez seja uma forma peculiar de enxergar Deus. Quem sabe só os cegos verão Deus. Assim como os pecadores.

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