Luiz Felipe Pondé

Escritor e ensaísta, autor de "Notas sobre a Esperança e o Desespero" e “A Era do Niilismo”. É doutor em filosofia pela USP.

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Luiz Felipe Pondé
Descrição de chapéu

Carnaval destrói ruas e suja a cidade em nome da alegria popular

No Brasil, a vergonha na cara se tornou um ativo raríssimo e agentes públicos negociam a liberdade com empresas da folia

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Imagine que você seja um protestante. Sua igreja, um prédio antigo e charmoso de um bairro residencial paulistano. Agora imagine que num domingo você e seus irmãos de congregação cheguem para orar e encontre sua igreja cheirando a xixi e todo tipo de imundície que pessoas juntas, e bêbadas, costumam secretar.

Que tipo de sentimento tomaria conta de você? Amor ao próximo? Aquele próximo mesmo que mijou na parede da sua igreja?

A ilustração figurativa de Ricardo Cammarota foi executada em técnica manual com tinta nanquim com pincel sobre papel branco.  A imagem, na horizontal, proporção de 17,5cm x 9,5cm - versão impressa, mostra um mapa do brasil em posição "de ponta cabeça", em cor chapada vermelha, com vários elementos sobrepostos e ele, estilizados em traços simples de instrumentos de som (pandeiro, cavaquinho, afoxé, tambor, atabaque, agogô), formando uma composição, juntamente com outros elementos (nota musical, coqueiro, coroa, máscara, bandeira brasileira coco) - traçados em preto e com cor digital de azul turquesa de fundo.  No entorno, um sol, nuvens, ondas de água e efeitos de fogos de artifício com confete e serpentina
Ilustração da coluna de 13 de março de 2023 - Ricardo Cammarota

Agora imagine que o pastor, irado, dissesse que aquelas pessoas que fizeram aquilo deveriam ir para o inferno? Adianto que não creio no inferno —apesar de que creio que se existisse inferno a vida seria muito mais interessante, como era na Idade Média, menos banal, como hoje é.

Mas, esse discurso do pastor seria facilmente tipificado como discurso de ódio, não? Inteligentinhos apontariam os dedinhos.

Agora voltemos a cena em alguns dias. Dias antes, empresas de bloquinhos, juntamente com os mandatários locais, atribuíram aquele pedaço do bairro para consumidores de bloquinhos.

A mesma prefeitura que abandonou São Paulo ao lixo e aos buracos. Um dos ambientes mais afeitos a corrupção é aquele em que se mija a céu aberto. E bloquinhos atraem bandidos para o bairro.

"Democraticamente" agentes públicos, movidos pela "alegria popular", negociam a liberdade das pessoas de ir e vir com empresas da "folia". E ocupam São Paulo por semanas, destruindo ruas, sujando praças, atrapalhando o trânsito. Mas, tudo bem, porque o "Carnaval é a cara da cultura brasileira".

O Brasil é um país sequestrado por uma cultura barata que vai do BBB à fúria democrática do Carnaval, passando pela corrupção da política e pela indiferença dos ricos que andam de helicóptero. Por que tantos estão fugindo?

Banheiros químicos ao longo das janelas da igreja, o bar oficial do bloquinho literalmente na entrada da igreja. Quando indagada sobre a razão de montar um bloquinho "em cima da igreja", uma das organizadoras não entendeu a pergunta, como se ela tivesse sido feita em klingon. E por que ela não entendeu?

Simples. Porque, para ela, os outros não existem, inclusive a comunidade religiosa que ali frequenta aos domingos. Todos os outros que não participam do bloquinho não existem.

Se o pastor naquele domingo gritar do púlpito, sem chances de ser ouvido pelas "autoridades", que quem fez aquilo deveria ir para o inferno, o coro de inteligentinhos dirá que ele faz um discurso de ódio.

Na verdade, você deve simplesmente engolir goela abaixo que mijem na frente da sua igreja em nome da festa democrática que é o Carnaval.

Podemos ampliar o fenômeno para todo mundo que tem sua loja, sua casa, invadidas pela folia "democrática" da imundície.

Claro que é direito das pessoas brincarem o Carnaval, mas isso deve ser feito com limites de tempo e espaço. A Bahia, terra que conheço muito bem, mantém parte da sua população sequestrada meses entre o Carnaval, as festas de largo e os gritos de Carnaval.

A praga chegou a São Paulo, e como aqui tudo vira indústria, logo o Carnaval paulistano será o mais rico do país, espalhando-se pelo calendário e pelos bairros, estabelecendo o reino da democracia cultural, da cachaça e da baderna.

O fato é que o que normalmente se chama democracia cultural é o resultado da força de quem consegue convencer de forma mais efetiva a máquina da prefeitura e gerar mais renda para empresários da alegria.

E se os fiéis irados fossem no sábado mesmo, quando a empresa estivesse preparando a festa, e quebrassem tudo? Quem estaria sendo antidemocrático? Os fiéis religiosos ou o business da alegria?

E se os fiéis fizessem um cordão de isolamento como os Gaviões da Fiel corintiana fizeram ao redor do seu estádio num momento de inquietação popular e ameaçassem quebrar a cara de quem rompesse o cordão?

A verdade é que o Brasil é um país em que a vergonha na cara se tornou um ativo raríssimo. As relações sociais degeneram. A classe política é delinquente, os líderes "do bem" idem. Quadrilhas e gangues dividem o poder. Mais de 500 anos para construir esse atraso. Quanto trabalho!

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