Roteirista e escritora, é criadora da série 'As Seguidoras' e trabalha com desenvolvimento de projetos audiovisuais
Se Spotify tivesse algoritmo feminista, eu já estaria cancelada pelo que escuto
Tente explicar para os quadris que a letra desse funk ou daquele piseiro é machista, porque eu me recuso
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Se o algoritmo do Spotify fosse uma mulher, ela já estaria recorrendo a remédios controlados. Imagino a DJ exausta me sacolejando pelos ombros: "mas você não é feminista?". Sim. "Como, se o vocalista da sua banda indie nova-iorquina preferida destruiu a vida da namorada, uma modelo que perdeu todos os seus contratos quando os dois foram pegos com heroína?" Eu sei, é complicado.
Mas poderia ser tão simples: gosto do som dele. Isso não significa que vou jogar minha calcinha no palco quando ele vier em turnê para o Brasil. Ser feminista também é sobre não aceitar as privações que nos foram impostas. E eu não vou renunciar ao prazer de ouvir esse machista no repeat. Se deletá-lo da minha playlist significasse o fim da violência física, sexual, psicológica, patrimonial, social e moral à qual as mulheres são submetidas, eu não pensaria duas vezes.
Para agravar a confusão mental do meu algoritmo, não me limito a bandinhas alternativas que só três pessoas conhecem. Sou uma profunda apreciadora de ritmos brasileiros como funk, brega, piseiro, sertanejo, pagode —e não estou sozinha nessa. Aprendi a coreografia de "Late, Coração" no TikTok para descobrir que o responsável pelo hit foi preso por violência doméstica. A gente não tem um minuto de paz nem quando quer se expor ao ridículo.
Na caixa de som que a galera do meu lado trouxe para a praia, a letra impositiva de um funk demanda que eu rebole para o "pai". Eu poderia fugir para o mar e me afogar em um redemoinho de problematização. Mas já diria o poeta: eu só quero é ser feliz. É meu dia de folga. Enquanto roteirista, no caso, porque a jornada de trabalho feminista é de 24 horas por dia, sete dias por semana.
Posso não concordar com a letra, mas tente explicar isso para meus quadris.
O piseiro, ritmo das vaquejadas que enlaçou meu coração e de milhões de brasileiros, me apresentou à Taty Vaqueira. Uma mulher de gostos simples —no caso, cachaça—, que, em sua lida bruta para se destacar em um meio dominado por homens, deu um nó na minha cabeça. Quando escuto no máximo volume ela rimar "sou teu animal" com "vem me domar fazendo amor no curral", só o algoritmo do Spotify pode me julgar. Eu me recuso a fazer o mesmo.
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