Lula é um maestro, mas governo não encontrou o tom, diz Frei Betto

Apoiador do PT, frade relaciona fiasco do 1º de Maio ao envelhecimento e à falta de renovação da esquerda e afirma que presidente governa com 'duas tornozeleiras eletrônicas'

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São Paulo

O escritor e teólogo Frei Betto levou para um encontro com o amigo Lula (PT), na quarta-feira (8), em Brasília, suas impressões sobre o atual governo do presidente. Horas mais tarde, recebeu a reportagem da Folha em São Paulo e usou referências musicais para expor sua opinião.

Comparou Lula a um maestro "que toca de ouvido" e disse que ele não cometeu nenhum erro grave em sua terceira passagem pelo Planalto, mas falta afinar o governo para "encontrar o tom" da comunicação.

Frei Betto posa após entrevista para a Folha no convento de frades dominicanos onde vive, em Perdizes (zona oeste de SP) - Karime Xavier/Folhapress

Nome histórico do campo progressista e apoiador do PT desde sua fundação —embora nunca tenha se filiado—, o frade dominicano agitou grupos de companheiros nas últimas semanas com um artigo em que criticou a "esquerda de cabelos brancos" por ter falhado na renovação de ideias e quadros.

A meses de completar 80 anos, ele diz não ter respostas para a crise, mas querer provocar reflexões, válidas também para a Igreja Católica. Frei Betto evitou falar da visita a Lula sob a justificativa de que guardaria os detalhes para o artigo semanal que publicaria em seu site.

"Nossa amizade sempre foi muito fraternal", disse.

Com o pé na estrada, ele está lançando seu 79º livro, "Jesus Rebelde" (ed. Vozes), e terá a vida retratada em cinco filmes —quatro documentários e uma ficção. O documentário "A Cabeça Pensa Onde os Pés Pisam", de Evanize Sydow e Américo Freire, sobre sua atuação na educação popular, acaba de estrear.

O que levou o sr. a escrever que a "turma dos cabelos brancos" precisa fazer autocrítica e "ter a coragem de abrir espaços às novas gerações"?
Faço muitos encontros e palestras pelo Brasil e comecei a notar poucos jovens. O artigo é uma espécie de chamado para o pessoal progressista, tanto na política quanto na religião, se dar conta do que está havendo. Que a juventude está noutra. A gente está envelhecendo e não está conseguindo reproduzir uma geração que abrace a Teologia da Libertação ou as teses progressistas de reformas estruturais.

Com exceção do MST [movimento de sem-terra] e do MTST [de sem-teto], que fazem trabalho de base, não há reprodução. Muitos quadros e militantes foram absorvidos pelas estruturas de governo, sejam municipais, estaduais ou federal, e não houve continuidade com a base. Está aí o fiasco do 1º de Maio.

E qual a sua explicação para o ato vazio no Dia do Trabalhador, que gerou reclamação do próprio Lula?
[Problema de] comunicação. Só fiquei sabendo que o Lula estaria lá depois que aconteceu o ato. E eu me considero um sujeito relativamente bem-informado.

Além disso, os movimentos em geral estão muito debilitados. E não está havendo ainda uma boa sintonia entre governo federal e movimentos sindicais, populares e pastorais em geral, de todas as religiões. Está faltando uma melhor articulação nesse sentido, mas o governo tem feito muitas coisas e tem avançado.

Onde?
Primeiro, é impressionante como, em qualquer catástrofe que ocorre neste país, o governo está lá presente. O Lula já foi duas vezes para o Rio Grande do Sul, mandou o ministério para lá, tomou várias medidas. Outro exemplo é a estrutura que montou na Amazônia para reprimir o garimpo ilegal e reduzir o desmatamento. Há também a valorização do salário-mínimo, a isenção no Imposto de Renda.

O governo tem caminhado. Se você me perguntar onde é que o governo errou feio, eu diria que em nada.

Para os erros que o sr. vê, que caminhos propõe?
Como eleitor, como torcedor por esse governo, acredito que deveria haver uma melhor comunicação, mais didática. O governo tem um poder de comunicação muito grande, só que ainda não encontrou o tom, a maneira. E, sobretudo, na trincheira digital, você não pode improvisar.

Eu acho que o governo está fazendo muito mais do que a população está sabendo.

Qual deveria ser o papel de Lula na comunicação?
O presidente Lula é o maestro da orquestra. O papel dele é coordenar. Agora... Ele fica, coitado, tem que apagar um incêndio a cada dia. E a composição do ministério depende de acordos políticos, de concessões, coalizões. A coisa não é fácil. Na política não existe o ideal. Existe o possível.

O governo faz o que pode. O Lula governa com duas tornozeleiras eletrônicas, uma em cada perna: o Banco Central e o Congresso. Ele dá nó em pingo d'água, continua dando, é um gênio. Ele realmente é um cara que toca de ouvido a orquestra e faz funcionar a música, mas é muito difícil.

Como vê as críticas a Lula quanto à responsabilidade fiscal e ao controle das contas públicas?
O que afasta o investidor são juros altos, que fazem o capital ir para a área especulativa, e não a produtiva. Para mim, a grande trava na questão econômica é a índole atual do Banco Central. Ela é antipovo brasileiro, em favor da Faria Lima. E dane-se a miséria. Não tem a menor sensibilidade social.

O que estraga o Brasil é a nossa elite, que é uma elite colonizada, que não saiu da casa-grande até hoje, voltada unicamente para os seus privilégios. É uma elite que tem ódio, raiva e nojo do povo. Só pensa em termos do seu paraíso fiscal, nunca pensou em criar uma nação com dignidade e decência.

No seu artigo, o sr. cita o caso de Marta Suplicy, que teve de ser resgatada pelo PT para a vice de Guilherme Boulos, a quem o sr. apoia na corrida à Prefeitura de São Paulo. Como vê a justificativa de que a experiência dela é um trunfo eleitoral?
É também, mas há um fator maior: ela atrai voto, e muito. É considerada nas pesquisas a melhor prefeita que São Paulo já teve.

E o sr. a perdoa pelo que são considerados erros dela, como votar pelo impeachment de Dilma?
Quem de nós não tem suas contradições? Ela teve as dela. Ela que tem que explicar isso. Eu continuo dizendo que foi contraditório com a história política dela.

Vê conexão entre a falta de renovação da esquerda e a perda de popularidade da Igreja Católica?
É evidente que sim. Esse neoconservadorismo está impregnando a Igreja Católica, que hoje é um corpo esdrúxulo: tem uma cabeça progressista, que é o [papa] Francisco, mas a maioria dos padres e seminaristas da safra atual é de formação conservadora. Eles são mais voltados para a liturgia e a paróquia e alheios à opção pelos pobres. O fundamentalismo no catolicismo é tão forte quanto entre os evangélicos.

O fato de o líder ser progressista faz então o sr. crer num processo que leve a uma nova igreja?
Não, eu ainda não tenho essa esperança. A resistência do corpo eclesiástico ao próprio Francisco é muito forte e permanece o clericalismo, em que tudo é centrado na figura do padre.

Numa igreja evangélica, as pessoas têm protagonismo e o culto é muito imagético. Numa igreja católica, os leigos são considerados seres de segunda classe e, em geral, a missa é aborrecida. A comunidade evangélica resgata a autoestima da pessoa, e a católica só fazia isso nas Comunidades Eclesiais de Base. Mas, como deixaram de ter importância para o episcopado, elas refluíram.

Por que a direita tem sido tão atrativa e tão bem-sucedida em avançar não só no Brasil, mas também fora?
Por dois fatores, ambos ligados à inovação tecnológica. A direita é dona das plataformas, está aí o Elon Musk [dono do X, antigo Twitter] para não deixar eu mentir. E, em segundo lugar, porque as big techs descobriram a forma de tornar o usuário dependente químico.

E o que faz a pessoa ficar ligada na rede? O ódio. O ódio mobiliza, movimenta. As redes digitais, que eu me recuso a chamar de sociais porque criam mais hostilidade que sociabilidade, são um dos fenômenos que provocaram mudança de conjuntura. E nós, progressistas, ainda não encontramos o passo certo.

Além da questão tecnológica, o que faz com que as ideias e pautas da direita tenham penetração?
Acho que essas pautas têm mais facilidade de deflagrar o nosso lado perverso, nosso lado emocional agressivo. E isso está sendo acionado por essas novas tecnologias e pelo comportamento hostil.

O sr. não citou Jair Bolsonaro em nenhum momento. Por quê?
Eu acho que ele nem merece.

Mas ele e o bolsonarismo continuam aí, com força política e eleitoral, e o sr. já escreveu que "é real o risco de a direita voltar à Presidência em 2026". Como evitar?
O que precisa ser feito é o governo Lula dar muito certo, conseguir levar suas pautas à prática, favorecer mais a comunicação e fortalecer a defesa das suas teses ou dos seus programas, principalmente nas redes digitais.

Que tipo de direita, na sua visão, é necessária hoje no Brasil?
Por mim, não deveria existir direita. Eu, se fosse decidir a Constituição de um país, proibiria qualquer partido que defendesse a supremacia do capital sobre os direitos humanos. Ponto. É assim que eu sou democrata.

Alguém de direita, ao ouvi-lo, não pode falar que isso também é discurso antidemocrático?
Não importa. O que eu mais estou acostumado é que vão falar. Mas essa é a minha posição como cristão.

Viu a fala de Michelle Bolsonaro na avenida Paulista em que ela pregou misturar política e religião?
Religião e política são indivisíveis na vida pessoal de cada um, e toda religião é visceralmente política. Não há religião neutramente política. Qual é a sabedoria? Não confessionalizar o Estado e não partidarizar as religiões.

Eu jamais falei no púlpito "vote nesse ou naquele partido ou candidato". Mas eu falo, sim, "temos que combater o capitalismo, fortalecer as forças sociais, fazer opção pelos pobres". Só que quem não gosta de ouvir isso fala que é [discurso] político.


RAIO-X - Carlos Alberto Libânio Christo (Frei Betto), 79

Frade dominicano, teólogo, jornalista e escritor, nasceu em Belo Horizonte e mora em São Paulo. Preso duas vezes durante a ditadura militar, foi assessor especial da Presidência da República no governo Lula, de 2003 a 2004, e coordenador de Mobilização Social do Programa Fome Zero. Tem 79 livros publicados. É assessor de movimentos sociais e da FAO/ONU para questões de soberania alimentar e educação nutricional

Frei Betto durante entrevista à Folha, na última quarta-feira (8) - Karime Xavier/Folhapress
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