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Roteirista e escritora, é criadora da série 'As Seguidoras' e trabalha com desenvolvimento de projetos audiovisuais

Descrição de chapéu

O espetáculo de poder assistir a alguém que tropeça e quase cai

Uma das experiências mais sublimes e viscerais que podemos ter é ver alguém catar cavaco na rua

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Acredito que uma das experiências mais sublimes e viscerais que podemos ter, enquanto espectadores, é ver alguém catar cavaco na rua. Catar cavaco é quando você tropeça e quase cai. Que espetáculo poder assistir, de camarote, a uma narrativa de superação tão sucinta e visual, que acontece em poucos segundos.

O herói aparenta ser só mais um pedestre no modo piloto automático. É quando tropeça e perde o equilíbrio. Agora, acelera involuntariamente o passo, lançado em uma corrida implacável contra a lei da gravidade. Esbraveja perante o rebote do destino, mas logo percebe que xingar é inútil. As circunstâncias exigem sua atenção total, cada movimento é decisivo, sua dignidade e sua integridade física estão em jogo.

Ilustração de Silvis para a coluna de Manuela Cantuária - Silvis

Humilhado, se curva para a frente, ganhando velocidade, cada vez mais rente ao chão. As consequências se agravam: se antes, o risco era cair, agora, está prestes a cair de cara. Porém, seu beijo no asfalto parece inevitável, e algo acontece. O descompasso de suas pernas dá lugar a um trote leve, aliviado, ele consegue retomar a postura, e agora, saltita como uma gazela que acaba de escapar das garras de um predador.

O herói poderia voltar a andar normalmente, mas estende seu trote serelepe por dois motivos. O primeiro é uma tentativa de disfarçar o que aconteceu, como se fosse esse o jeitinho dele de se locomover, feito o coelho atrasado de "Alice no País das Maravilhas". O segundo é aproveitar o embalo para se afastar do local o mais rápido possível, evitando maiores constrangimentos.

Mas o herói é humano, demasiadamente humano, e ainda que tenha recuperado o controle de suas pernas, não se pode dizer o mesmo de seus instintos. Ele não consegue evitar o impulso de olhar em volta e conferir a reação da plateia. Nesse momento, quando o herói quebra a quarta parede e olha na minha direção, também sou obrigada a pensar rápido. Também me vejo em uma situação constrangedora, pois agora percebo que se trata de uma peça interativa.

Preciso engolir o riso, que desce como uma bola de pelo. Desvio o olhar, me entregando de corpo e alma a fingir que não vi o que aconteceu. Tento me convencer de que faço isso por solidariedade, mas não sou eu a heroína dessa história, apenas uma covarde que aparenta ser mais uma pedestre no piloto automático. Ufa, essa foi por pouco.

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