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Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

Descrição de chapéu

Os ingredientes da crise

Pacto constitucional instituído em 1988 parece dar sucessivos sinais de esgotamento

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A prisão do ex-presidente Lula serviu, neste momento, para acalmar os setores de direita e para dissipar a impressão de um casuísmo no Supremo Tribunal Federal. Mas o impasse continua e vai ainda trazer muita dor de cabeça.

Não demorará muito para que o Supremo reveja a ideia de permitir prisões logo depois da segunda instância. Ficaria muito sem graça fazer isso para proteger um réu específico —ainda mais sendo ex-presidente da República e atendendo pelo nome de Lula—, mas, se não é lógico que a maioria do plenário termine obedecendo à opinião minoritária, menos lógico ainda, a meu ver, é o sistema adotado pela presidente do STF, Carmen Lúcia, para evitar que o assunto seja rediscutido pelo tribunal.

A questão é levantada por duas ações diretas de constitucionalidade (ADCs). Nelas, pergunta-se respeitosamente ao Supremo se um artigo do Código de Processo Penal está de acordo com a Constituição.

O artigo, de número 283, teve uma redação aprovada pelo Congresso em 2011, e é bastante claro: "Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva".

Quando o Legislativo votou esse ponto, imagino que se pensava estar apenas seguindo o que a Constituição já dizia. A saber, que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória".

Como se sabe, o Supremo abriu a possibilidade de prisão depois de segunda instância (e acho que na prática isso é o correto) analisando as entrelinhas e contextos do texto constitucional. Vá lá.

Mas insistir no mesmo ponto quando se trata do que diz o Código de Processo Criminal (com clareza maior ainda) é forçar com vontade redobrada a imaginação interpretativa.

Veja-se agora a tática de Carmen Lúcia. Seus adversários no Supremo querem colocar em pauta a ADC que poderá mudar a regra da prisão. Carmen Lúcia não apenas se recusa a isso mas argumenta que outros temas têm prioridade.

Por exemplo, novos pedidos de habeas corpus apresentados por Paulo Maluf e Antonio Palocci.

Sim: como recursos desse gênero incidem sobre um direito fundamental, o direito à liberdade, há máxima urgência em julgá-los antes de qualquer outra coisa.

O paradoxo salta aos olhos. Em vez de seguir essa lógica, põe-se o habeas corpus em primeiro lugar na fila com o objetivo de negá-lo! A pressa para proteger o acusado se transforma em pressa para mantê-lo preso... Com isso, adia-se por mais um tempo a decisão provável de uma maioria que irá livrar muita gente da cadeia.

Não há certeza, é claro, quanto ao voto dessa maioria. Rosa Weber ainda é uma incógnita.

Mas a desmoralização continua no STF, mesmo depois da derrota de Lula. Quando o ministro Gilmar Mendes afirma que seus colegas de Corte provêm de "péssimas indicações" por parte dos governos petistas, tratando-se de "pessoas sem formação, sem pedigree", não sei se não é a gota d'água para alguma resposta institucional que vá além do bate-boca.

No final do regime militar, dizia-se que a Constituição era uma "colcha de retalhos". A situação é semelhante hoje, com o Congresso incapaz de modificá-la e com o STF mudando-a como bem entende.

Houve um golpe que "não era golpe" porque o sacrossanto texto constitucional tratava como crime um artifício orçamentário; o texto constitucional já não é tão sacrossanto assim. Houve uma chapa derrotada tentando puxar o tapete das eleições no TSE, com apoio de Gilmar Mendes quando Dilma era presidente e sem seu apoio depois que Temer assumiu. Há um general criticando a "impunidade" no caso Lula enquanto reclama da Comissão da Verdade. O país chega às vésperas de uma eleição sem candidatos fortes. Os ingredientes da crise estão à vista de todos.

Não digo que vá haver golpe militar. Estamos longe disso. Mas alguma ruptura não é improvável, com as coisas do jeito que estão. Uma nova assembleia constituinte seria ideia arriscada, mas me parece nítido que o pacto de 88 cada vez menos se sustenta.

Erramos: o texto foi alterado

O texto informou incorretamente que ações questionavam no STF (Supremo Tribunal Federal) se um artigo do Código de Processo Criminal estava de acordo com a Constituição. Na verdade, ele se referia ao Código de Processo Penal.

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