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Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

Renovar a democracia é mais urgente do que lutar por sua permanência

O inacreditável acontece todo dia no Brasil, mas ainda não vi um militar fazendo autocrítica às Forças Armadas de 1964

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Para alguma coisa serviu a nota divulgada pelos comandantes das Forças Armadas e pelo ministro da Defesa, general Braga Netto, na semana passada.

Julgaram-se ofendidos quando o presidente da CPI da Covid, senador Omar Aziz (PSD-AM) disse que “fazia muito tempo que o Brasil não via membros do lado podre das Forças Armadas envolvidos com falcatrua dentro do governo”.

Publicada em 13 de julho de 2021 - André Stefanini

O senador foi cuidadoso: disse que não estava generalizando nem “entrando no mérito que as Forças Armadas têm”. Os comandantes e o ministro não se mostraram, contudo, interessados em sutilezas desse tipo.

A “narrativa”, declararam, “atinge as Forças Armadas de forma vil e leviana, tratando-se de acusação grave, infundada e, sobretudo, irresponsável”.

A reação, eu ia dizendo, tem sua serventia. Vem demonstrar, a meu ver, como era ilusória a impressão de que a cúpula militar seria um contrapeso para a doidice de Bolsonaro.

Ah, dizia-se, a última coisa que os militares desejam é um golpe… Ah, vocês viram o que disse o general Mourão? Ele é bem mais equilibrado… Hum, hum, o oficialato se modernizou, não está disposto a repetir os impasses de 1964…Vai ficando difícil se enganar com esse otimismo institucional.

Continuo sem imaginar um quadro de golpe no estilo Castelo Branco ou Pinochet, com tanques nas ruas, Congresso fechado e torturadores em plena atividade. Mas há golpes e golpes, tutelas e tutelas, coisas mais drásticas e coisas mais graduais.

Nunca se sabe. Havia a teoria segundo a qual, sem apoio nos quartéis, Bolsonaro iria se valer das polícias militares para se manter no poder.

Pode-se manter parte dessa avaliação, tirando daí uma consequência nova: para não perder a iniciativa, para não ficar em segundo plano atrás da PM, os militares estão se prontificando a sustentar o presidente.

Criam suas próprias teorias do que é constitucional e do que não é, assim como têm opinião sobre qual o melhor tratamento da Covid e sobre o que é falso ou verdadeiro nas notícias sobre negociatas do governo.

Tenho uma palavra para qualificar atitudes desse tipo —assim como a de fazer vista grossa à participação política do general Pazuello numa manifestação bolsonarista. Trata-se de indisciplina.

Esses comandantes simplesmente não se conformam com os limites estabelecidos para sua atuação dentro de uma democracia.

Coisas surpreendentes e inéditas acontecem todo dia no Brasil. Mas ainda estou para ver o militar que tenha feito uma autocrítica satisfatória da atuação das Forças Armadas em 1964.

Ao contrário: até hoje eles comemoram oficialmente o aniversário do golpe, que não é feriado, não é data cívica, não é motivo de orgulho para ninguém além deles mesmos.

Ainda estou para ver o militar que não se ofenda com a Comissão da Verdade —ou com qualquer relato dando conta de que houve tortura no Brasil.

Ainda estou para ver um militar, em suma, que esteja sintonizado com os avanços democráticos dos últimos 30 anos. O que vejo é inconformismo, arrogância, ameaça velada e mimimi.

Nas décadas de 1960 e 1970, não faltaram exemplos de imprudência, irresponsabilidade e provocação contra os militares por parte de setores da esquerda.

O presidente Jair Bolsonaro (à dir.) e o vice presidente Hamilton Mourão (à esq.), em 1 de junho de 2021 - Pedro Ladeira/Folhapress

Sem dúvida, os democratas brasileiros aprenderam amargamente a sua lição; foi com imenso cuidado que se conseguiu negociar a volta do Brasil à normalidade institucional.

Fico pensando, entretanto, se não aprendemos bem demais. Continuamos com uma postura de subserviência e medo diante de um setor do Estado que se imagina mais do que realmente é e se atribui poderes que não possui.

Mexer com as aposentadorias e salários dos militares é tabu. Os disparates de um general qualquer são acolhidos, hum, com máximo respeito e algumas obtemperações gentis.

Com 70% da população considerando que há desonestidade no governo Bolsonaro, com o descrédito do presidente correndo à solta, assim como correm à solta o genocídio, a destruição ambiental, as rachadinhas e escândalos de família, não acredito que golpistas militares e civis tenham sucesso.

Quem sabe, de tudo isso, nasçam oportunidades não apenas para afastar Bolsonaro, evitar o golpe e manter a democracia. Mais do que mantê-la, trata-se de fortalecê-la e renová-la, longe desse permanente rosnar de ameaças e dessas eternas poses de ofendido.

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