Siga a folha

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

De Bolsonaro a Black Lives Matter, há estampas de máscaras para todos

Num mundo em que cada pessoa quer se diferenciar, acessório não se rendeu à propaganda nem à imaginação

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

As pessoas estão sempre inventando moda, de modo que me espanto com a falta de imaginação na área das máscaras de Covid. Sou fiel à azulzinha, embora me digam que a outra, informalmente chamada de "bico de pato", é mais segura.

Não. A branca, pontuda, me aperta demais. Gosto da frouxa, da barata, da fajuta. Não só porque sofro da síndrome da orelha mole, que já comentei em outro artigo.

A principal razão é a mais errada: como a máscara não adere ao rosto completamente, surgem fendas de ventilação, dos lados, em cima, embaixo.

Óbvio que por essas fendas o vírus encontra seu caminho. Mas, puxa vida… O principal está feito. Também não vamos exagerar… O dever supera a racionalidade.

Nesta época de fim de ano, meu pai tinha a mania de comprar buquês de rosas e entregar para conhecidos a quem devesse gentilezas. Eram outros tempos, e ele não gostava de gastar dinheiro: de
modo que pegava o carro, enchia o banco de trás com 15 ou 20 dúzias e seguia cruzando a cidade de casa em casa.

Como já era difícil achar vaga de estacionamento, ele parava o carro onde desse, e eu descia com o buquê e o cartão.

Uma vez, ficamos na frente de um prédio, e eu comuniquei ao porteiro a entrega para o doutor Fulano de Tal. O porteiro avisou: estava viajando, só voltaria dali a um mês.

Meu pai tinha pressa. "Entrega, entrega! Deixa lá com o porteiro!" Mas as flores iriam murchar; passariam um mês esperando o Doutor Fulano. "Não importa, não importa!" Obedeci. Ele concluiu: "A cortesia foi feita". E partimos para outro endereço. Dever cumprido, consciência limpa, item "ticado", como se diz.

Estou de máscara! Ah, essa aí não adianta grande coisa. Bom —adianta, sim. E pelo menos eu respiro; que os óculos embacem, já é prova de minha colaboração.

O que acho estranho é que, azul ou branca, a máscara comum é de longe a preferida. Todo mundo, hoje em dia, quer se diferenciar. Ou então quer divulgar suas adesões, fidelidades, preferências de consumo.
Sim, já vi algumas máscaras com bandeira do Brasil: é o bolsonarismo "sensato", caso em que a sensatez é ainda mais louca do que a loucura.

Acho que é possível achar máscaras do Black Lives Matter; mas o rosto humano, no dia a dia, evita entrar em campanha. Poderia haver máscaras para toda ocasião.

Não digo só políticas. Uma vermelha dizendo "feliz Natal", ou, melhor ainda, "ho ho ho". E, se todo mundo acha normal andar com logotipo da Nike ou da Prada por aí, como é que não fizeram ainda máscaras de marca?

Você poderia até ganhar uma. Quer entrar no Bradesco? Use nossa proteção facial e assine sua adesão a nosso plano de saúde. Uma máscara preta com ranhuras mostraria o apoio da Pirelli à segurança nas borracharias.

Ilustração publicada em 14 de dezembro de 2021 - André Stefanini

Algumas coisas desaparecem sem dar aviso. Aí por 1980, não existia quem não grudasse adesivos no vidro traseiro do carro. Toda loja tinha o seu para distribuir: Tkts, Pakalolo, Fiorucci. Todo candidato: Zancaner, Brasil Vita, Robertão. Toda causa: anistia, demarcação das terras indígenas, salvemos as baleias, Plano Cruzado, eu acredito...

A sociedade se ideologizou muito mais, as convicções se radicalizaram, mas ninguém mais usa o carro como instrumento de propaganda. Será medo? Acho que não, acho que só pararam de fabricar.

Uma coisa, de todo modo, é o carro —você se sente protegido dentro dele. A mensagem na máscara pode ser entendida como um "dar a cara para bater". Mas há outros motivos, acho, para que se prefira a neutralidade nessa hora.

O adesivo ou a camisa de propaganda expressam sua mensagem nos momentos em que você está sem falar nada, no silêncio do automóvel ou na distância da rua. A máscara toma o lugar da sua boca. Seria um balão de história em quadrinhos enquanto você, vivo e em carne e osso, está falando coisa totalmente diferente.

Mas por que branca, azul ou preta? Nada de corezinhas diferentes? Estampadas existem, mas são raras.
A razão talvez seja bizarra. São as cores da calcinha ou da cueca. Sei que o "nude" é muito usado na lingerie, mas no rosto confundiria as coisas. O branco e o azul claro, não: eis a intimidade protegida, os fluxos corporais impedidos de transitar, o elastiquinho a ponto de soltar-se, a liberdade prometida para breve na nudez próxima do rosto.

Temos corpo, contaminável, frágil, fluido e mortal. Ao cobri-lo, admitimos o escândalo que há nisso.

Receba notícias da Folha

Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber

Ativar newsletters

Relacionadas