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Psicanalista e ensaísta, com pós-graduação pela Universidade de Paris 8 e FFLCH/USP. Autora de "Lupa da Alma" e "Coisa de Menina?".

Tava bêbado

Podemos passar décadas nos enganando com histórias para boi (a gente) dormir

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Como sabe o leitor, o aparelho psíquico funciona basicamente em dois campos, com leis e conteúdos distintos: o consciente e o inconsciente. O consciente trabalha com as noções usuais de tempo, espaço e causalidade. O inconsciente opera com lógicas enigmáticas e entrelaça tempos e espaços, como nos sonhos. Como o nome diz, o inconsciente não se apresenta facilmente para nós, aliás sobretudo para nós mesmos. Podemos passar décadas nos enganando com histórias para boi (a gente) dormir, como aquelas que a gente conta em entrevista de emprego: meu maior defeito é a insistência. Ou em mesa de bar: me apaixonei perdidamente, mas não posso abandonar minha mulher porque sou fiel à mãe dos meus filhos. Até, depois de anos de lamento, você descobrir que precisava permanecer casado com a imagem da própria mãe. O escudo que nos protege de nosso inconsciente e suas tristes verdades é a "censura". Pois bem, há um ditado que diz: a censura é solúvel em álcool.

Claro, não estou fazendo apologia do álcool –embora tenha lido interessante entrevista da BBC publicada nesta Folha dizendo do papel dos aditivos químicos nos processos de civilização, para ajudar o desconfiado bicho humano a aprender o risco da confiança e da cooperação. Então, Monark, que bom que você estava bêbado e pôde finalmente entrar em contato com tudo aquilo que você é. Uma sociedade menos hipócrita talvez conseguisse encaminhar seus conflitos de uma forma menos tortuosa.

Mas parece que ainda acreditamos piamente no mito da consciência. Quando a perdemos, não somos. "Tava bêbado, não valeu". Álibi pronto para sair da manga. Aham.

Cuidado: a próxima vez em que você disser isso, todos os advertidos vão estar atentos. É o que está por trás da linha da censura. Maridos e esposas, cuidado: não vale dizer "estava bêbado". O cônjuge vai saber: isso é mais verdade do que aquele monte de blablablá que você me conta quando está lúcido.

Outra forma de escapar do que a gente faz (termo técnico: desimplicação subjetiva) é apelar para as emoções. Faz mais de 2.000 anos que a Razão venceu o páreo e pretende ser a escudeira da legitimidade. Então a gente diz: estava com raiva, não valeu. Desculpa, foi um momento de descarga –catarse, o fluxo por onde escorre Pathos. Uma vez um cara disse: tava com raiva, tava com tanta raiva que dei paulada até matar. E continuei batendo sem nem perceber que já tinha matado. Estava literalmente cego de raiva, não conseguia ver o outro, não conseguia nem considerá-lo um outro humano. Era um animal, uma pedra, uma coisa. Coisa a ser abatida (essa a engrenagem das estruturas totalitárias de destruição em massa). Um sargento, também homem, branco, viu um outro homem, negro: fiquei com medo e matei. Estranho? Sim. Fiquei com medo de ele me agredir e matei.

A ira e o medo não são os únicos álibis no rol dos afetos convocados à nossa boa e velha prática de dizer "não foi culpa minha". Virou até lei. Ah, tava com meus colegas caçando bandido do mal e senti "forte emoção", então fiz uma chacina. Faxina geral na bandidagem. E ainda com o privilégio de me esconder na massa, a ocultadora master da responsabilidade individual. Excludente de ilicitude. Tadinho, era muita tensão para você lidar. Vai fundo, mata alguns. Não esquece: em nome do Bem.

O atento leitor já percebeu aonde quero chegar. Em bom português: patético o jogo retórico da desculpa furada quando uma cultura não consegue ter a coragem de assumir quem é, o que pensa e o que faz. Como diria Freud, somos sempre responsáveis, inclusive pelo nosso inconsciente.

Para fechar, a paulada de Brecht: a cadela do fascismo está sempre no cio.

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