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Psicanalista e ensaísta, com pós-graduação pela Universidade de Paris 8 e FFLCH/USP. Autora de "Lupa da Alma" e "Coisa de Menina?".

30 de março, faz um ano que você morreu

As águas de março se tornam agora infinitas

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30 de março faz um ano que você morreu.

3 de março foi o dia da outra perda devastadora da minha vida, do pai, há décadas; as águas de março se tornam agora infinitas.

Tento de novo.

30 de março, faz um ano que você morreu.

Eu queria escrever três linhas matadoras e deixar a maior parte deste espaço vazio, para marcar sua ausência. Essa que ainda pulsa dentro de mim. Como a linda coluna em branco só com o desenho do seu rosto na semana da sua morte.

Ou queria poder escrever as três linhas definitivas e cheias de sangue como a outra bela coluna que tinha seu nome e a sua foto em vermelho.

Guardo esses papéis todos aqui na bancada do lado da mesa de jantar, do lado da urna com as cinzas. Nem passou tanto tempo e eles já estão todos amarelados. Olho para essa pilha de pedaços de jornal que se amontoam, tão antiga, tão fora de moda e penso: mas nem passou tanto tempo, como já está tudo tão seco e amarelado?

O tempo talvez passe mais rápido para o mundo, e não para mim.

Tento de novo e de novo as três linhas definitivas. Fatais.

Mas não consigo.

Me esparramo. Sempre excessiva.

Juro que esta é a última vez que uso este espaço para escrever teu nome.

É que transbordo.

Há um ano venho guardando papéis.

Nas roupas e nos objetos ainda não tive coragem de mexer.

Meu corpo guardo intacto, quase intacto, pois que pedras o atingem.

Nossa casa guardo intacta, quase intacta, pois que pedras tentam atingi-la. Mas a protejo a despeito de tudo, como prometi.

E guardo nosso pequeno, "um filho para mim", como você dizia, da forma tão doce e tão máscula que só você podia ter. Um homem.

Você oferta o pulso para seguir, mesmo quando algo se rompe, como agora.

Minha nascente, meu ofertório, meu norte imaginário.

Faça a coisa certa. Escuto essa frase ecoando sobre os destroços.

Sobre as pedras, as mentiras, as bombas.

Eles continuam fazendo a guerra e desferindo golpes sujos.

Deus, dai-me a coragem para escolher as disputas que devem ser lutadas.

Não quero vir a pensar que desisti dessas.

Sobreviva. Escuto hoje esse imperativo ecoando de dentro das vísceras.

Sob o útero, o osso, o fio do cabelo e tudo que enfraquece a cada dia.

Sobreviva, ainda e até o final.

Você não pode desistir.

Vivo pela memória, pela escrita e por cada um que te mantém pulsando.

30/3 fará um ano, pela primeira vez.

Vou catando pelo chão os restos de força para abrir a urna e começar a espalhar as cinzas.

Primeiro no ar, depois na terra.

Talvez em algum oceano.

O recorte do mar pelo homem.

Veneza.

Onde fomos tão, tão felizes.

As cinzas escapam das minhas mãos.

Se desfazer no infinito é a única coisa que todos temos em comum.

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