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Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

Os Três Mosqueteiros voltam ao cinema, mas são mortos-vivos

O filme faz deles uma pasta de zumbis intercambiáveis

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Está em cartaz em São Paulo uma versão estonteante de "Os Três Mosqueteiros", o romance de Alexandre Dumas que inaugurou o gênero capa e espada e é o livro francês mais traduzido de todos os tempos.

O filme custou a bagatela de 72 milhões de euros. Tem Vincent Cassel e Eva Green no elenco estelar. Os cavalos são os mais garbosos da história da sétima arte. É fulgurante o desfile de castelos de sonho, jardins de cetim, galerias de cristal e galanteios de amolecer estátuas.

Os ambientes refletem o fausto da corte de Luiz 13 e a imundície do século 17. Os figurinos fulguram, mas o realismo faz com que aristocratas e andrajosos pareçam ter tomado seu último banho uma década antes. Se até Versalhes não tinha banheiros, imagine a fedentina.

Há mais de 50 adaptações da mosquetada para o cinema, televisão, teatro e quadrinhos. Paris, Hollywood, Moscou, a Cinecittà, até o Rio –"Os Três Mosqueteiros Trapalhões"–, tentaram reativar o frufru de Dumas. Não fizeram nada que preste.

"Os Três Mosqueteiros: D’Artagnan" é a primeira parte. Um segundo capítulo será lançado no fim do ano. Não é preciso esperá-lo para cravar que o filme duplo integra o cortejo de mal-entendidos que assedia o livro desde 1844, quando foi escrito.

Ilustração de Bruna Barros para coluna de Mario Sergio Conti de 28 de abril de 2023 - Bruna Barros

Os equívocos começam pelo título, já que os três mosqueteiros são quatro: Athos, Aramis, Porthos e D’Artagnan. E terminam no lema famoso da galharda trupe, "um por todos e todos por um", pois o que Dumas de fato escreveu foi "todos por um, um por todos".

Você dirá que a ordem dos termos não altera o slogan. Mas a eufonia fluida –o original é de monossílabos graves– tem a ver por que o livro trata, exatamente, da primazia do todos sobre o um, da asfixia do indivíduo pela sociedade.

O filme, contudo, começa com a ressureição de um indivíduo, D’Artagnan. Enterrado vivo, ele sai da cova como quem levanta o lençol. A cena dá início não às peripécias labirínticas do espadachim, mas à sua arrancada retilínea rumo ao coração da França.

Dumas foca em "Os Três Mosqueteiros" um bando de peraltas com personalidades em formação, conta suas travessuras álacres e arriscadas. D’Artagnan está com 18 anos quando sai da Gasconha para conquistar Paris; o ator que o faz, François Civil, tem 33.

Os parisienses falam em "promessas de gascão" para chatear jovens como o Cyrano de Bergerac de Edmond Rostand e o D’Artagnan de Dumas, provincianos falastrões e enroladores que se esbaldam com o foie gras e o armagnac da Gasconha natal.

Os atores que encarnam os outros mosqueteiros têm entre 38 e 56 anos. São senhores maduros, de semblantes gastos e enfezados. Fariam boa figura num piquenique de motoqueiros das antigas. Estão mais para artrite que para esgrima.

Dumas lhes afiou os perfis. O cabeçudo Athos não ri. Porthos é simplório. Aramis, o jesuíta aflito, tem traços feminis. Já o filme faz deles uma pasta de zumbis intercambiáveis. Também somem os valores que os uniam: a camaradagem grupal e a lealdade aos Bourbon.

O diretor Martin Bourboulon tenta injetar dados da atualidade na trama. De passagem, é dito que Porthos é bissexual, apesar de Dumas não dar nenhuma indicação nesse sentido.

Ocorre o mesmo com a criada de quarto de Ana da Áustria, Constance, casada com Bonacieux, um verme avaro. No filme, ela é solteira, serelepe e mestiça. Neto de um escravo negro de São Domingos, Dumas poderia tê-la pintado com sua cor. Mas não quis e deveria ser respeitado.

A regra geral é que grandes livros gerem filmes ruins. ("Macunaíma", ótimo nas páginas e telas, é exceção). "Os Três Mosqueteiros" é diferente. Prolixo, redundante, meloso e desequilibrado, é um fenômeno popular que prescinde do cinema.

Dumas é esnobado pela crítica, que torce o nariz para seu sensacionalismo. Ainda assim, ela lhe reconhece a pujança narrativa e o senso histórico. Porque o livro conta como, com a capa e a espada de choques sangrentos, se erigiu a monarquia absolutista.

O herói oculto do romance foi o homem mais rico e poderoso da França de então, Armand Jean du Plessis, o cardeal de Richelieu. Sem a sociedade que moldou o sinistro indivíduo de barrete púrpura, não haveria Athos, Aramis, Porthos e D’Artagnan –nem o Estado francês de hoje.

Porque não haveria, como está escrito em "Os Três Mosqueteiros", o "estranho destino que leva os homens a se destruir uns aos outros em defesa do interesse de indivíduos que lhes são estranhos, e que muitas vezes nem sequer sabem que eles existem".

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