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Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

A extrema direita fica forte nos países aonde os fracos vão

É questão de tempo para que bolsonaristas e similares agitem o fantasma da imigração

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A extrema direita brasileira não ataca os imigrantes. Na calota norte dá-se o contrário. Trump quer acabar seu muro para evitar que alienígenas profanem o solo ianque. Marine Le Pen promete expulsar a estrangeirada da terra benta por Joana D’Arc. A Alternativa para a Alemanha, partido xenófobo de raiz nazi, triunfou nas eleições regionais do último domingo.

A direita brucutu proclama que a escória, procedente de países idem, rouba empregos dos bem-nascidos e abusa dos serviços públicos. É posando de patriota e campeã da causa trabalhadora que ela inculca sotto voce: ponham-se no seu lugar, tições de cabelo pixaim, amarelos de olho puxado, mulatos de pano de prato na cabeça; vão ciscar noutra freguesia.

A demagogia de apontar bodes expiatórios dá resultado. A extrema direita fica forte nos países aonde os fracos vão porque oferece uma saída simplória e desumana para um problemaço. Em contrapartida, não basta repetir Samuel Johnson para vencer a extrema direita: "o patriotismo é o último recurso de um canalha".

Por falar em canalha, Bolsonaro apontou o dedo para a China na pandemia. Disse que o vírus da Covid tinha sido inventado em laboratórios de lá para uma "guerra bacteriológica". Bucéfalo, imitou seu chefe, Trump, que mencionou o "perigo amarelo".

É questão de tempo para que bolsonaristas e similares agitem o fantasma da imigração. Há cerca de 600 mil venezuelanos do Oiapoque ao Chuí, sendo que só no ano passado chegaram 192 mil. E 160 mil haitianos vivem por aqui; em 2010 eram 36.

Como nossa população é de 215 milhões, os imigrantes são poucos, relativamente. Mas o Estado é uma joça e, conforme nos alertam todo santo dia, urge cortar despesas para amamentar os rentistas, tadinhos.

É da tradição de nosso Estado tratar mal gregos e goianos, desde que pobres. Agora mesmo, há 650 imigrantes amontoados no aeroporto de Guarulhos. Fugiram em desespero de onde moravam e toparam com o Brasil em estado bruto, o da carência e desconversa.

Aí vem um patriota e brada que seu belo país não pode ser o lixão dos "diferentes". É preciso cuidar dos autóctones e deixar os forasteiros ao relento, diz. Que os sírios fiquem em Damasco, os palestinos tomem na cabeça em Gaza e os venezuelanos vão para Cuba.

A ONU informa que há 282 milhões de migrantes no planeta. Só de forçados a abandonar suas casas —devido a guerras, perseguições, violação do direitos humanos, penúria— são 120 milhões, o equivalente à população do Japão. A cada 69 terráqueos, um teve de deixar tudo para trás e aprender novos costumes e línguas. Os refugiados triplicaram na última década.

Embora o problema seja internacional, as iniciativas para solucioná-lo são nacionais e ineficazes. Elas redundam em naufrágios no Canal da Mancha ou no Mediterrâneo, em deportações na fronteira do México com os Estados Unidos.

Ponha-se no lugar de uma imigrante, leitora. Não é difícil porque talvez você tenha ancestrais europeus, ou negros arrancados da África e vendidos aqui como escravos. (Meu avô, adolescente calabrês que não tinha onde cair morto, veio para o Rio e vendeu bilhetes de loteria na rua).

A experiência da diáspora deu origem a uma literatura soturna, que se expandiu porque os refugiados estão em todos os cantos. Ela lanceta um estigma definidor da situação contemporânea: a incerteza permanente.

É o que ocorre em "A Man of Two Faces: a Memoir, a History, a Memorial", publicado nos Estados Unidos no fim do ano passado. Seu autor, Viet Thanh Nguyen, ganhou o Pulitzer com o romance "O Simpatizante", que vendeu um milhão de exemplares —e foi moído pela egolatria de Robert Downey Jr. num seriado ruim de vomitar.

Tinha quatro anos quando os americanos foram derrotados no Vietnã. Foi obrigado a fugir do país e o separaram dos pais. Peregrinou por campos de refugiados e por fim os reencontrou, mas num ninho de espinhos. Teve que se adaptar a um modo de vida que lhe era e é hostil, aprendeu a se calar.

"Através das janelas do castelo de areia da minha memória, posso ouvir o oceano da amnésia, perpétuo, invencível", ele escreve. Pouco lembra do passado, mas ele ficou inscrito no semblante dos pais, que pelejaram para que se amoldasse ao novo ambiente.

Com duas caras, ele tem uma angústia perene, um vago ressentimento, uma fúria surda. Nguyen escapou da lata de lixo em que os imigrantes são jogados e escreveu um livro para se vingar. Oxalá um refugiado palestino ou venezuelano faça o mesmo.

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