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Administrador de empresas pela FGV, doutor em urbanismo pela FAU-USP e autor do livro 'Espaço Público e Urbanidade em São Paulo'

Caminhando por São Paulo com o jovem Oswald de Andrade

No centenário da Semana de 22, as memórias do modernista revelam as transformações da cidade e do escritor

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As memórias de Oswald de Andrade foram planejadas para vários volumes. Apenas um foi escrito, e publicado em seu último ano de vida. Vai da infância ao início da vida adulta, entre 1890 e 1919: "Um Homem sem Profissão: Memórias e Confissões, sob as Ordens de Mamãe".

O livro é um retrato magistral de duas transformações. De um lado, a passagem do menino para o homem. De outro lado, a mudança explosiva de São Paulo no início do século XX, pelo olhar especialíssimo de Oswald.

As primeiras memórias partem de sua casa, na rua Barão de Itapetininga, e se confundem com a própria cidade. "De suas janelas, eu, pela primeira vez, espiava a vida. São Paulo era uma cidade pequena e terrosa. Pouca gente. Um ou outro sobrado de um só andar. As pessoas ficavam conversando nas janelas e sentadas nos jardins."

Panorama do vale do Anhangabaú, "a sala de visitas da cidade" na década de 30 - Reprodução do livro São Paulo - Três Cidades em um Século

As conversas da família sobre a cidade chegavam até o menino. O pai vereador se orgulhava da sua participação na decisão de retirar o pedágio que cobrava os três vinténs dos passantes do Viaduto do Chá. Já morando na rua Santo Antônio, o adolescente solitário ouvia as contradições da cidade: do campo do Clube Alético Paulistano, o grito das torcidas do futebol; do cemitério da Consolação, a marcha fúnebre nos enterros.

A chegada do bonde foi um acontecimento. "Anunciou-se que São Paulo ia ter bondes elétricos. Os tímidos veículos puxados a burros, que cortavam a morna da cidade provinciana, iam desaparecer para sempre". As pessoas tinham medo de tomar choque nos trilhos e desconfiavam da Light. "Um mistério esse negócio de eletricidade. Caso é que funcionava". Oswald estava na São João no dia da primeira viagem. Para espanto da multidão, o bonde surgiu e... quebrou. Consertado o cabo de eletricidade, "ficou pelo ar, ante o povo boquiaberto que rumava para as casas, a atmosfera dos grandes acontecimentos".

Os pequenos acontecimentos da vida do jovem Oswald também ganham transcendência quando se pensa nas mudanças urbanas, como as caminhadas com os colegas do Colégio São Bento ou a primeira vez em que foi fazer a barba, no Salão América, em frente à Igreja de Santo Antônio. A igreja está lá, mas a barbearia se foi, assim como o comércio da rua da Quitanda, a livraria Garroux, e as prostitutas que ficavam na antiga Líbero Badaró.

Uma ida ao circo —na praça da República— marcou a consciência da própria libido. "O circo foi um deslumbrado céu aberto na seara de emoções que me cercava. As mocinhas de maiô entraram em meus olhos e aí permaneceram". Pois as mulheres são onipresentes nas memórias do pré-modernista. Do embevecimento com as criadas da casa à desajeitada primeira vez com uma mulher mais velha, dos inúmeros casamentos à garçonniere na rua Libero Badaró.

Entre todas as aventuras com mulheres, uma delas despertou emoções desconhecidas: Isadora Duncan. A musa o convidou para um encontro depois do espetáculo, no hotel onde se hospedava, o Hotel de la Rotisserie Sportsman, demolido para dar lugar ao Edifício Matarazzo, que hoje hospeda a Prefeitura de São Paulo. O convite desperta dúvidas atrozes. "Aquela deusa tinha me mandado dizer que viesse vê-la. Mas como? Quem era eu diante da deidade boêmia e esvoaçante? Quem era eu, o filho bem educado de Dona Inês, para suportar aquele sopro de tempestade shakespeariana?".

O fato é que os dois se entenderam e seus passeios pela cidade são no mínimo curiosos: "Isadora e eu nos tornamos os maiores amigos do mundo. Andávamos de carro por São Paulo inteiro. Ela me fazia descer para pedir flores estranhas nos jardins das casas. Fomos a Osasco e, num pôr do sol entre árvores, ela dançou para mim, quase nua."

O jovem chega à vida adulta e faz o que outros adultos fazem. Namora, frequenta o teatro e dá os primeiros passos no trabalho, como repórter de jornal. Ao contrário de outros, porém, viaja pela Europa, traz uma mulher a tiracolo, casa-se, tem filho, amantes, se separa, forma-se na São Francisco, gesta sua carreira de escritor, conhece Mario de Andrade, e abre seu próprio jornal, o Pirralho, numa salinha no fundo do corredor de um sobrado na Quinze de Novembro.

Em 1918, a gripe espanhola que causou a morte de quase 1% da população da cidade, foi descrita com estupor por Oswald: "Seis semanas lívidas, intérminas. Os enterros povoam as ruas. Grandes coches fúnebres atravancam o Centro. Em casa, ninguém sofreu nada. Perdi três dúzias de conhecidos e amigos. A doença foi como veio".

As memórias terminam em 1919. Pouco tempo depois, seria protagonista da Semana Arte Moderna de 1922 e autor do Manifesto Antropófago, de 1928. Oswald deixa um pensamento original sobre a arte, o Brasil e um amor à vida urbana: "o escritor que não desce à rua, que não briga com o condutor de bonde por causa do troco, não joga no bicho, não torce no futebol, é um pobre-diabo". É uma exortação atualíssima e vale para qualquer profissão.

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