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Mulher indígena morre no parto após ter aborto legal negado no Paraná

OUTRO LADO: Secretaria de Saúde paranaense diz que não há nexo entre o motivo do óbito e o acesso à interrupção e afirma que seguiu protocolos do Ministério da Saúde

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Uma mulher indígena que teve negado o acesso ao aborto legal morreu durante seu trabalho de parto em Guarapuava, no Paraná, na quarta-feira (15). Mirian Bandeira dos Santos tinha 35 anos de idade, era mãe de dois filhos e relatava ter sido vítima de violência sexual. Após semanas de angústia e um périplo para tentar interromper a gestação, teve sua vida abreviada por uma embolia pulmonar enquanto dava à luz.

A informação foi confirmada à coluna pelo Projeto Vivas, organização que auxilia meninas e mulheres a acessarem serviços de aborto legal e chegou a prestar atendimento a Mirian.

"É um caso que marcou muito a gente. Foi uma sensação de que as pessoas que estavam tentando ajudar, na verdade, estavam criando barreiras", afirma a diretora do projeto, Rebeca Mendes.

Ato pela descriminalização e legalização do aborto na avenida Paulista, em São Paulo - Bruno Santos - 28.set.2023/Folhapress

"Acredito que esse caso deva ser um divisor de águas para que o Ministério da Saúde trace diretrizes claras, de acordo com as evidências científicas, para que casos como esse não ocorram", afirma a defensora pública Mariana Nunes, que também atendeu Mirian.

"A gente está diante de uma morte materna evitável, de uma grave violação de direitos humanos das mulheres que pode remeter a uma espécie de 'feminicídio'", diz. "Há indícios de omissão e ação ativa do Estado para impedir esse abortamento. E o desfecho, agora, é irremediável", completa.

Originária da reserva indígena de Mangueirinha (PR), que é habitada pelos povos Guarani Mbya e Kaingang, Mirian teria sido violentada por um ex-companheiro que não aceitou o fim do relacionamento dos dois. Após o episódio, ela afirmou ter tomado um contraceptivo de emergência e feito um teste rápido, que não indicou gestação. A indígena também fazia uso regular de anticoncepcional injetável, segundo registros.

Mirian descobriu-se grávida com cerca de 20 semanas de gestação, após buscar atendimento em uma Unidade Básica de Saúde (UBS) de Guarapuava, para onde se mudou com os filhos após o episódio de violência.

Em 18 de agosto, foi acolhida por uma assistente social do centro local de Atendimento à Mulher em Situação de Violência. A mulher foi descrita nos registros como "extremamente abalada e fragilizada". Ainda de acordo com os documentos oficiais, ela repetia frases como "não consigo me sentir mãe", "não consigo me sentir limpa", "não consigo amar essa criança" e "me sinto culpada, envergonhada e suja".

Mirian, então, decidiu fazer um aborto legal. No Brasil, o procedimento é previsto em lei quando há risco à vida materna, em casos de estupro e de gestação de feto anencéfalo. Em um quadro como o dela, não há necessidade de registro de boletim de ocorrência nem de autorização judicial.

A gestação já alcançava a 26ª semana, e, temendo eventuais represálias, o serviço de assistência social decidiu encaminhá-la para a Defensoria Pública do Paraná, a fim de que fosse obtida uma autorização judicial para a interrupção.

A Defensoria buscou o Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná (UFPR), uma das quatro unidades do estado consideradas referências para o procedimento legal. O atendimento foi negado, tendo como justificativa o tempo gestacional avançado. O mesmo já havia ocorrido em Guarapuava.

Foi então que o Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (Nudem) da Defensoria procurou ajuda junto ao Projeto Vivas. A ideia era levar a indígena até um hospital público de outro estado para que o procedimento de interrupção pudesse ser realizado via SUS (Sistema Único de Saúde). Uma vaga chegou a ser conseguida para o dia 28 de agosto.

Nesse meio tempo, porém, Mirian foi procurada por agentes públicos de assistência social de sua cidade, que teriam demonstrado preocupação com o procedimento e feito alertas de que ela poderia ser "processada" caso seguisse adiante.

Após a Defensoria Pública questionar a intervenção, e também se tornar alvo de questionamentos pela administração municipal, uma coordenadora da Prefeitura de Guarapuava afirmou estar receosa por não conhecer a ONG nem o hospital para o qual Mirian seria levada.

Em ligação feita ao Nudem, a gestora também negou qualquer intenção de dissuadi-la de realizar o aborto legal. Era 24 de agosto. Quatro dias depois, Mirian, que antes estava decidida, informou que não queria mais fazer a interrupção.

Nos últimos contatos que fez com alguns dos que prestaram assistência a ela, a mulher indígena enviou as seguintes mensagens, obtidas pela coluna: "Só quero que isso acabe o mais rápido possível", "viver esse pesadelo dói a cada segundo", "isso tá acabando comigo", "tá me machucando muito".

"Quando vem a mensagem de que ela faleceu, foi quase uma derrota. 'Perdemos uma', essa foi a sensação", afirma a diretora do Projeto Vivas. "Mas o nosso trabalho continua. A gente entende está ali para dar o poder da escolha. E não falo que a escolha foi 100% da Mirian, ela foi influenciada", diz Mendes.

Para a defensora pública que atuou no caso, a hesitação que tomou a indígena não seria fruto de má-fé por parte daqueles que possam tê-la desaconselhado, mas de falta de informação e do temor presentes nos serviços públicos de saúde e de assistência social. Procurada, a Prefeitura de Guarapuava não respondeu.

"Ela tinha duas crianças pequenas, que agora não têm mais mãe. Ela tinha uma bolsa do governo federal [para o ensino superior], estava no primeiro ano de enfermagem. Era uma mulher indígena que tinha uma perspectiva de realizar o trabalho em saúde na sua própria comunidade, e de repente tem a vida devastada por uma violência sexual, por uma violência do Estado e por todas as barreiras que foram impostas a ela", diz Nunes.

Embora o governo de Jair Bolsonaro (PL) tenha editado uma norma que tratava como crime todo e qualquer aborto legal realizado após a 22ª semana, uma nota técnica elaborada neste ano por secretarias do Ministério da Saúde afirma que o fator principal a ser levado em consideração, nesses casos, deve ser "a intenção deliberada de interromper a gravidez".

As secretarias de Atenção Primária à Saúde e Atenção Especializada à Saúde ainda destacam, na mesma nota, que "a legislação brasileira não estabelece um limite de tempo gestacional para o aborto legal".

Procurado pela coluna para comentar o caso de Mirian, o Ministério da Saúde não entrou em detalhes e se limitou a dizer que "cumpre rigorosamente a legislação". Afirmou, ainda, que "o SUS deve garantir os direitos das mulheres ao atendimento adequado e seguro dentro das boas práticas da assistência em saúde", além de assegurar o acolhimento humanizado.

"Entre os primeiros atos, a atual gestão do Ministério da Saúde revogou uma série de portarias e normas técnicas que apresentavam exigências que dificultavam o acesso aos serviços pelas mulheres vítimas de violência, indo na contramão dos princípios do SUS e representando um retrocesso aos direitos femininos", diz a pasta, em nota.

A Defensoria Pública do Paraná chegou a buscar orientações junto à Secretaria de Saúde do Paraná (Sesa) para auxiliar Mirian. Em resposta, a pasta afirmou que a realização do aborto legal "está delimitada em até 20 semanas, podendo estender-se até 22 semanas, a depender do peso do produto da concepção ser inferior a 500g".

Procurada pela coluna, a secretaria estadual diz que "não há nexo causal comprovado entre o motivo do óbito e o acesso à interrupção da gravidez prevista em lei", já que a morte de Mirian teria se dado em decorrência de uma emergência ocorrida durante o parto.

Acrescenta, também, que o caso seguiu os fluxos previstos pelo SUS e pela legislação em relação ao atendimento de vítimas de violência sexual —embora Mirian não tenha sido encaminhada imediatamente a um serviço de aborto legal e tenha tido seu pré-natal comprometido pela descoberta tardia.

"A Sesa presta, continuamente, apoio técnico e institucional aos profissionais e serviços da Rede de Atenção à Saúde do Paraná, conforme disposto nas notas técnicas, normativas e protocolos do Ministério da Saúde, demonstrando seu comprometimento com a garantia dos princípios e diretrizes do SUS, dos direitos das mulheres e da saúde integral das pessoas em situação de violência do Paraná", pontua.

A pasta estadual afirma que segue uma norma editada em 2012 pelo Ministério da Saúde, que diz que "casos que ingressem para atendimento entre 20 e 22 semanas [de gestação] devem ser rigorosamente avaliados".

"No mesmo documento, o MS [Ministério da Saúde] orienta que, nos casos de gestações avançadas, 'não há indicação para interrupção da gravidez após 22 semanas de idade gestacional. A mulher deve ser informada da impossibilidade de atender a solicitação do abortamento e aconselhada ao acompanhamento pré-natal especializado, facilitando-se o acesso aos procedimentos de adoção, se assim o desejar'", segue.

"Desta forma, não há, por parte do Ministério da Saúde, normativas técnicas que indiquem ou que orientem o procedimento de interrupção da gestação em caso de violência sexual em idade gestacional avançada e nem sobre o procedimento de indução de óbito fetal", finaliza.

Embora a lei brasileira não estabeleça qualquer limite temporal para a realização do aborto legal, é comum que serviços públicos de saúde criem seus próprios limites, baseando-se ou não em notas técnicas emitidas por órgãos oficiais.

A falta de padronização tende a dificultar o acesso de meninas e mulheres aos seus direitos reprodutivos, como já mostrou a coluna.


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No ano passado, a Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia) rechaçou a norma editada pelo Ministério da Saúde em 2012, agora citada pela secretaria paranaense para explicar o atendimento ofertado a Mirian.

"Os limites estabelecidos em manuais ou normas técnicas do Ministério da Saúde são infralegais e devem ser superados a partir das evidências científicas e recomendações das sociedades da especialidade", afirmou.

Na ocasião, a entidade destacou que diretrizes da OMS (Organização Mundial da Saúde) e da Figo (Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia) não limitam a assistência a meninas e mulheres em situação de aborto legal à idade gestacional.

"Há, inclusive, orientações sobre a dose do tratamento adequado para o aborto induzido em idades gestacionais mais avançadas", pontuou, recomendando a adequação de protocolos e serviços no Brasil.

com BIANKA VIEIRA, KARINA MATIAS e MANOELLA SMITH

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