Siga a folha

Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”

Outras raízes do Brasil

Na boca do extremismo, família confunde-se com milícia

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

"Nós somos família. Nós temos uns aos outros e ninguém mais. Amigos, namoradas, vizinhos, moradores locais, o Estado. Tudo isso é uma ilusão, nada que valha a pena acender uma vela. Somos nós contra eles. Nós contra absolutamente todo mundo." Esse é um trecho de "The Kingdom", livro mais recente do popular escritor norueguês Jo Nesbo, que vende milhões de exemplares a cada publicação. A fala pertence a um fazendeiro rude e arredio que tenta consolar os filhos envolvidos num incidente.

Pode causar alguma estranheza o recorte circunspecto de um best-seller quando a prática pública das referências competentes se centra na maioria em autores celebrados.

No jornal ou na academia, a citação é quase sempre um argumento de autoridade, com que se pretende neutralizar o debate instantâneo do que se diz ou escreve. Tipo: Assim falou o grande Fulano de Tal, logo, está acabada a discussão. Daí a cautela de se valer dos clássicos e naturalmente passar ao largo da literatura de grande consumo, que, no entanto, pode mergulhar fundo no imaginário social.

A narrativa de Jo Nesbo, descritiva de uma personalidade antissocial num grotão norueguês, é exemplo geral de uma paisagem humana depressiva e ameaçadora. A fala isolacionista do personagem é interiorana, mas o espírito de "nós contra todos" virou hashtag urbana: nos EUA, circula desde os broncos caipiras do Meio-Oeste aos terroristas domésticos do trumpismo, armados até os dentes.

O texto também evoca à perfeição um aspecto tosco do caráter de uma parcela da população brasileira, que emergiu de sua longa latência pública por meio das redes sociais. Péssimo vinho velho em garrafa nova.

A defesa da família, supostamente ameaçada pela mutação dos costumes, caiu de paraquedas em meio a uma realidade fabricada na ventania do irresponsável conforto tecnológico da vida moderna, isto é, as redes sociais. Trata-se de uma construção imaginária adaptada ao vazio político dos discursos. É vento de moinho quixotesco.

Entre nós, soprou forte na última sessão parlamentar de impeachment, um dos espetáculos mais deprimentes da história do Legislativo nacional. Onde se dizia "família" reverberava "massa" como eco do rompimento de laços civis por delírio e violência.

A governança por parentesco, compadrio e aliciamento tem se difratado em modalidades sombrias. Vai hoje de parasitários clãs políticos a formações mafiosas nas disputas territoriais com o Estado. Aliás, máfia vem de "ma fia", minha filha (não objeto de amor e cuidado, mas pretexto para a lavagem a sangue das diferenças), em dialeto siciliano. Na boca do extremismo, família confunde-se com milícia.

Receba notícias da Folha

Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber

Ativar newsletters

Relacionadas