Muniz Sodré

Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”

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Muniz Sodré

Vestígios de um declínio

A democracia liberal de mercado oscila entre o declínio do terreno e o buraco do abismo

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Politicamente, é inócuo apenas constatar um declínio, talvez por isso a Cúpula pela Democracia de Joe Biden tenha chovido no molhado. Dois diagnósticos recentes merecem maior atenção.

O primeiro é o resultado de uma pesquisa divulgada pelo Instituto Idea, na Suécia, que comprova o rebaixamento de indicadores internacionais. O outro é a conclusão do secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, depois de visita à África, de que "a democracia está em recessão no mundo".

Desenhados por analistas liberais, os indicadores democráticos têm feito um balanço de categorias como liberdades civis e pluralismo entre outras, graduando avanços e recuos. É um mapeamento técnico. A frase do secretário de Estado, entretanto, tem impacto político, porque é a voz de uma potência. Apesar da crise de hegemonia, a América não abre mão do seu "sistema imperial", isto é, de um poder que vai além do próprio Estado, com um centro dominante e uma periferia transnacional dependente.

Sintomático é que a fala de Blinken deixe de ecoar a arrogância do império, pois ficou implícito que a recessão também o atinge. Foi inequívoca a tentativa de golpe de Estado em janeiro. Evidenciam-se fraturas no sistema, cujo equilíbrio pauta-se, republicanamente, por liberdade e igualdade. Mas vale notar que a liberdade no pacto federativo americano refere-se primeiramente aos estados, isto é, são "livres" para moldar o sistema democrático, inclusive com segregação, que no Sul nunca se extinguiu de fato. Na democracia jeffersoniana (de Thomas Jefferson, terceiro presidente americano), o mercado tem a primazia. Os direitos das minorias são objeto de luta civil.

República é o reflexo do ser de um Estado nacional, mas o seu vir a ser está na vida comum. A democracia pregada por um soft-power fascinante (filmes, show-business) deixa de contar que a proclamação do "somos iguais" depende de um programa de emancipação, ou seja, de políticas públicas consistentes, para se tornar real. Só que as convulsões civis têm sido mais fortes do que as miragens no espelho liberal.

Irradiam-se os vestígios da crise democrática na maior potência do planeta, onde a República, entretanto, permanece estável. O risco está nas nações periféricas, onde legisladores violam os limites, juízes permitem-se a disfunções constitucionais, facções religiosas viram partidos políticos e a esfera pública se mafializa. Talvez urdido nos porões do império, o "lawfare" ou golpismo híbrido tem sido um pato manco. Daí, a Cúpula: a democracia liberal de mercado oscila entre o declínio do terreno e o buraco do abismo.

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