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Prêmio Nobel de Economia, colunista do jornal The New York Times.

Descrição de chapéu União Europeia Rússia

Como a globalização acaba empoderando a autocracia

Governantes autoritários podem ver integração econômica entre países como licença para se comportarem mal

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Em 12 de abril de 1861, a artilharia rebelde abriu fogo contra o Forte Sumter, iniciando a Guerra Civil americana. A guerra acabou sendo uma catástrofe para o Sul, que perdeu mais de um quinto de seus jovens. Mas por que os secessionistas acreditavam que poderiam vencer?

Um dos motivos foi que eles acreditavam possuir uma poderosa arma econômica. A economia da Grã-Bretanha, a principal potência mundial na época, dependia profundamente do algodão do sul dos Estados Unidos, e eles pensaram que o corte dessa matéria-prima obrigaria os britânicos a intervirem ao lado da Confederação. De fato, a Guerra Civil inicialmente criou uma "fome de algodão" que deixou milhares de britânicos sem trabalho.

Afinal, é claro, a Grã-Bretanha manteve a neutralidade —em parte porque os trabalhadores britânicos viram a Guerra Civil como uma cruzada moral contra a escravidão e aderiram à causa da União apesar de seu próprio sofrimento.

Pessoas passam por bandeiras de países em frente à sede da ONU, em Nova York - Angela Weiss - 13.set.2021/AFP

Por que contar essa antiga história? Porque ela tem óbvia relevância para a invasão da Ucrânia pela Rússia. Parece bastante claro que Vladimir Putin viu a dependência da Europa, em particular da Alemanha, do gás natural russo da mesma maneira que os donos de escravos viram a dependência britânica do Rei Algodão: uma forma de dependência econômica que coagiria esses países a permitir as ambições militares dele.

E Putin não estava totalmente errado. Na semana passada, critiquei a Alemanha por sua hesitação em fazer sacrifícios econômicos pelo bem da liberdade da Ucrânia. Mas não esqueçamos que a reação da Alemanha aos pedidos da Ucrânia por ajuda militar às vésperas da guerra também foi patética. O Reino Unido e os Estados Unidos correram para fornecer armas letais, incluindo centenas de mísseis antitanques que foram cruciais para repelir o ataque russo a Kiev. A Alemanha ofereceu e demorou para entregar... 5.000 capacetes.

Não é difícil imaginar que se, por exemplo, Donald Trump ainda fosse presidente dos EUA a aposta de Putin de que o comércio internacional seria uma força de coerção, e não de paz, teria sido confirmada.

Se você acha que estou tentando envergonhar a Alemanha para que ela se torne uma melhor defensora da democracia, acertou. Mas também estou tentando defender uma tese mais geral sobre a relação entre a globalização e a guerra, o que não é tão simples quanto muita gente supunha.

Havia uma antiga crença entre as elites ocidentais de que o comércio é bom para a paz, e vice-versa. A antiga pressão americana pela liberalização do comércio, que começou antes mesmo da Segunda Guerra Mundial, sempre foi em parte um projeto político: Cordell Hull, o secretário de Estado de Franklin Roosevelt, acreditava firmemente que tarifas mais baixas e um maior comércio internacional ajudariam a depositar os alicerces da paz.

A União Europeia também foi um projeto econômico e político. Suas origens estão na Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, criada em 1952 com o objetivo explícito de tornar as indústrias da França e da Alemanha tão interdependentes que jamais poderia haver outra guerra na Europa.

E as raízes da atual vulnerabilidade da Alemanha remontam aos anos 1960, quando o governo alemão-ocidental começou a seguir a Ostpolitik —"política oriental"— tentando normalizar as relações, incluindo as econômicas, com a União Soviética, na esperança de que a crescente integração com o Ocidente reforçaria a sociedade civil e moveria o leste na direção da democracia. O gás russo começou a fluir para a Alemanha em 1973.

Então o comércio promove a paz e a liberdade? Certamente, isso acontece em alguns casos. Em outros, porém, governantes autoritários mais preocupados com o poder do que com a prosperidade podem ver a integração econômica com outros países como uma licença para se comportarem mal, supondo que as democracias com forte participação financeira em seus regimes farão vista grossa aos seus abusos de poder.

Não estou falando só da Rússia. A União Europeia observou durante anos enquanto Viktor Orban sistematicamente desmantelava a democracia liberal na Hungria. Até que ponto essa fraqueza pode ser explicada de modo geral pelos grandes investimentos na Hungria que empresas europeias, especialmente as alemãs, fizeram enquanto adotavam a terceirização para cortar custos?

Depois há a questão realmente grande: a China. Será que Xi Jinping vê a estreita integração da China com a economia mundial como motivo para evitar políticas audaciosas —como invadir Taiwan— ou como motivo para esperar uma reação fraca do Ocidente? Ninguém sabe.

Agora, não estou sugerindo um retorno ao protecionismo. Estou sugerindo que preocupações de segurança nacional sobre o comércio –preocupações reais, não versões farsescas como a invocação por Trump da segurança nacional para impor tarifas ao alumínio canadense– precisam ser levadas mais a sério do que eu, entre outros, costumava acreditar.

Mais imediatamente, porém, os países que respeitam a lei precisam mostrar que não serão impedidos de defender a liberdade. Os autocratas podem acreditar que a exposição financeira a seus regimes autoritários deixará as democracias com medo de defender seus valores. Precisamos provar que eles estão errados.

E o que isso significa na prática é que a Europa deve agir rapidamente para cortar as importações de petróleo e gás russos e que o Ocidente precisa fornecer à Ucrânia as armas de que necessita, não apenas para manter Putin à distância, mas para vencer claramente a guerra. O que está em jogo aqui é muito maior que somente a Ucrânia.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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