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Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

Estupro no DNA?

Assimetria entre DNA europeu, indígena e africano indica violência sexual na formação do Brasil

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A miscigenação brasileira é fruto do estupro sistemático de mulheres indígenas e africanas? Conforme mostra reportagem do dileto colega Gabriel Alves, os dados sobre esse tema que vêm das análises de DNA têm algo de acachapante.

Quando se observa só o mtDNA (DNA mitocondrial, presente apenas nas usinas de energia das células e transmitido exclusivamente pelas mães a suas filhas e seus filhos), 70% dos brasileiros têm material genético indígena ou africano, presentes em proporções similares.

Entretanto, 75% dos homens do Brasil têm cromossomos Y (a marca genética da masculinidade, passada apenas de pai para filho homem) de origem europeia. Já os cromossomos masculinos tipicamente africanos são 14,5%, e os indígenas, apenas 0,5%.

A assimetria, vista por esse ângulo, é gigantesca. Faça as contas. Ela significa, por exemplo, que apenas 1 em cada 200 índios do sexo masculino vivos em 1500 deixaram descendentes que carregam seu cromossomo Y em 2020.

Quadro "A Redenção de Cam", do artista espanhol Modesto Brocos - Reprodução

Como seria de esperar, há quem relativize esses números. Existem algumas maneiras intelectualmente honestas de fazer isso, mas elas pouco amenizam a brutalidade do cenário.

A primeira é que a história do mtDNA e do cromossomo Y não conta a saga completa de uma população. Para que a linhagem de mtDNA específica de uma mulher suma, basta que, em algum momento, ela pare de ter descendentes do sexo feminino. A da minha mãe, por exemplo, já era (ela teve dois filhos homens). Idem no caso do cromossomo Y: qualquer homem que só tenha filhas deixa de legar o seu.

Relativizemos a relativização, porém. Para começar, as linhagens de mtDNA e Y carregadas por irmãs, tias e primas, ou por pais, avós e sobrinhos, são muito, muito parecidas. Ou seja, não somem tão fácil. Além disso, sumir ou continuar é questão de cara ou coroa (chance de 50% de ter filho ou filha). Portanto, jamais teríamos uma assimetria tão escorchante por esse mecanismo.

Outra forma de amenizar o desequilíbrio seria o fato de que costumavam ocorrer alianças matrimoniais entre líderes indígenas e europeus nas quais os invasores se uniam a uma ou várias filhas de caciques, como o célebre João Ramalho, de São Paulo. Sim, isso ocorria, mas não há indício de que fosse um fenômeno generalizado.

“Ah, vieram apenas homens da Europa, quase nenhuma mulher”, dizem alguns. Pode ser, mas os números são difíceis de explicar só desse jeito. Do Descobrimento até o fim do século 20, aportaram aqui 5 milhões de africanos escravizados e 7 milhões de imigrantes voluntários (a grande maioria europeus). O número inicial de indígenas é mais incerto, mas faz sentido imaginar que existissem pelo menos entre 5 milhões e 10 milhões deles no atual território brasileiro. De novo: faça as contas.

Por fim, nunca existiu sociedade escravista em que os senhores não enxergassem a exploração sexual de seus servos como “parte do pacote”. O “imperador-filósofo” romano Marco Aurélio chega a se vangloriar por não ter se aproveitado sexualmente de sua escrava Benedita e de seu escravo Teódoto (ao contrário do esperado). O mesmo sempre valeu para gregos, persas, árabes ou mongóis.

A assimetria genômica brasileira é só um exemplo extremo do que se vê em qualquer lugar do mundo em que tenham existido conquistadores e conquistados. Os homens da etnia vencedora sempre buscaram monopolizar as mulheres dos vencidos. Isso significa que todas as relações sexuais aconteciam à força? Não —mas é muito razoável concluir que a maioria delas dependia do brutal desequilíbrio de poder entre senhores e escravas.

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