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Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

Como terminam os vilões

Na ficção, a punição exemplar de facínoras atende a demandas ancestrais

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Uma das vantagens da literatura sobre a realidade é que nela, em contraste com esta, os vilões costumam se dar mal. Não chega a ser uma regra inescapável, mas é comum.

O grande escritor americano Mark Twain (nem um pouco menor depois de vários “cancelamentos”) nos ajuda a entender o porquê disso. Numa tirada famosa, disse que a vida real é mais estranha que a ficção porque esta precisa se inscrever no horizonte do possível, isto é, fazer sentido.

Precisa mesmo. Caos e incompletude são privilégios do real que não se transferem bem para o mundo imaginário da contação de histórias, aquele com que nossa espécie compensa há milênios a brutalidade arbitrária do mundo concreto.

Fazer sentido, nesse caso, vai além da esfera do racional. A punição exemplar de escrotos fictícios atende a demandas mais profundas.

Um de seus pés está plantado no alívio emocional do leitor, em forma de catarse. O outro, na educação moral de toda a coletividade, como representação de uma —ainda que ilusória, concebível— justiça.
Isso parece ter raízes longas que vão tocar na origem da representação, ou seja, se alimentam daquela sopa primordial de linguagem que distingue os humanos dos outros animais.

Como tudo que é tão ancestral e básico, o castigo aplicado a personagens maus, dos simples canalhas aos monstros absolutos, acaba resvalando no clichê, na falta de imaginação.

Não é outra a razão do sucesso popular daqueles —tantas vezes chapados e tediosos— filmes hollywoodianos de vingança.

Cabe a autores mais inteligentes jogar de forma artisticamente sutil com essa expectativa. Frustrá-la, “premiando” com cinismo realista o vilão, é um modo de driblar o problema, mas nem de longe o mais usual.

(Aviso importante, antes que eu próprio vire vilão: os parágrafos seguintes contêm spoilers.)

Um dos fins de personagem vilanesco mais marcantes da literatura brasileira é o que acomete em 1827 o abominável Perilo Ambrósio, Barão de Pirapuama.

Trata-se de um “herói da Independência”, representante da podre oligarquia nacional, que João Ubaldo Ribeiro (1941-2014) retrata com humor em sua obra-prima, o romance “Viva o Povo Brasileiro”, de 1984.

Grande senhor de terras na Bahia, o barão não valia um pequi roído. Entre outras atrocidades, tinha cortado a língua do negro Feliciano, testemunha da falsidade de seu heroísmo, e estuprado a mais linda de suas escravas, a jovem e orgulhosa Venância.

O feitiço com que Ubaldo justiça o tal Ambrósio se destaca da narrativa clássica de punição ao personagem facinoroso por sua natureza ridícula, que o autor se diverte desdobrando em minúcias.

Beberagens misteriosas preparadas pelos escravos trancam todos os buracos de saída do barão. O cara vai se enchendo aos poucos de suas fezes e mijo —padecendo “de urinas e bostas presas muito dolorosas, que o levavam a uivar lastimosamente toda noite”.

O riso nervoso do leitor tempera a catarse de tal forma que prejudica a gravidade do conforto moral proporcionado pelas histórias clássicas de justiça ou vingança. A agonia do barão é excruciante, mas risível —farsa das boas.

Por outro lado, não se pretende menos exemplar: “Morte mais linda que a do barão nunca houve nem nunca pode haver”, garante o narrador, que jamais fingiu ser imparcial.

Nem poderia. Diante de Perilo Ambrósio, como de outros vilões fictícios ou reais, a imparcialidade seria um crime imperdoável.

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