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Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

Descrição de chapéu ifood

E o app me chamou de 'mozão'

Quem o sabor artificial da linguagem do marketing digital pensa que engana?

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A reportagem de Clarissa Levy que a Agência Pública publicou na segunda (4), intitulada "A máquina oculta de propaganda do iFood", merece leitura atenta.

Trata-se de um relato sobre (transcrevo o subtítulo) "como agências de publicidade a serviço do app de delivery criaram perfis falsos em redes sociais e infiltraram agente em manifestação para desmobilizar movimento de entregadores".

O lado inconfessável do marketing digital não é novidade. A reportagem tem o mérito de mapear uma pequena província na ponta de um iceberg do tamanho do mundo —tema vital em ano de eleição.

Entregadores do iFood se reuniram em frente à sede da empresa em Osasco para protestar - Rivaldo Gomes - 1º.abr.22/Folhapress

Perfis falsos, robôs, ocultação de autoria, manipulação, fake news —o arsenal do marketing na era das redes faz os velhos manuais de publicidade e propaganda parecerem a "Ética" de Espinoza.

Quem se interessar por uma investigação pioneira sobre o impacto disso na política deve ler "A Máquina do Ódio" (Companhia das Letras), de Patrícia Campos Mello, repórter deste jornal.

A besta bolsonarista é filha dessa máquina —inseminada pelo ativismo judicial, seu "conge". Mas aí tocamos em assunto vasto demais para os limites da coluna.

No meu quintal, quero apenas chamar atenção para um aspecto limitado, ainda que marcante, do marketing digital: a hipocrisia ululante de sua linguagem.

Numa troca de mensagens revelada pela reportagem de Levy, um funcionário de uma das agências contratadas pelo iFood alerta os colegas para o risco de parecer "muito profissa" nas postagens. E lembra: "É tom de rede, galera. Lado B. Não é uma página oficial contratada...".

Um exemplo desse "tom de rede" sintetizado em laboratório, segundo a matéria, é o tuíte da conta @MiiFerreira6 —supostamente de um entregador— em resposta a um pedido de apoio ao movimento de paralisação da categoria, em julho do ano passado: "Nois q é motoca não ajuda não! Sexta feira é dia que os corre bomba, bora acelera e mete marcha".

Guardadas importantes proporções, isso me lembrou de uma mensagem que recebi outro dia, por coincidência do mesmo app.

Falando em nome do iFood, a mensagem tentava, no meio da tarde, me convencer de que eu estava com suficiente "fominha" para encomendar um "lanche maneiro" ou coisa parecida. Rotina.

Até aí, vá lá. Quem sabe eu estivesse mesmo com fominha, o corpo humano tem dessas coisas. O problema era o vocativo que encerrava o textinho. Li, estranhei, reli —era aquilo mesmo. O app estava me chamando de "mozão".

Disso eu devo dizer que não gostei. Nunca dei confiança ao iFood para ser tratado assim. Forçar intimidade é coisa de gente mala —por que seria diferente com um app?

Não estou comparando uma coisa com a outra. A mensagem do "mozão" tinha uma vantagem ética decisiva sobre a do falso entregador: seu remetente não fingia ser quem não era. Contudo, talvez haja aí um pecado original comum.

Sempre achei que a linguagem "informal", "jovem", "de rede" que o marketing digital cultiva é sabor artificial de morango demais para o meu gosto. Será que é porque sou velho?

Tenho minhas dúvidas. Quando uma pessoa jurídica gigante do mundo financeiro lança seu banco digital para jovens com slogans como "Junta a grana da galera sem perrengue", será que a galera é tola a ponto de acreditar no tiozão?

A diferença entre mentirinha de vendedor e estelionato é de grau, não de substância. A falsidade é falsa antes de virar crime. Não surpreende que esse papo de "mozão" acabe em descalabro.

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