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Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

Da gramática às receitas da vovó

Acusado de ser um destruidor da língua, colunista bota a velha no meio

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A coluna pede licença para falar... da coluna. Entre as reações de leitores, positivas ou negativas, que por aqui chegam há anos, nenhuma me deixa mais bolado do que a que me considera um destruidor da língua portuguesa.

A acusação é tola, claro. Caso existam, suponho que "destruidores da língua" comecem por destruir, bem, a língua em que se exprimem, não? Que sujeito do povo dos vândalos, ao saquear uma cidade romana, se deteria a acariciar uma Vênus de mármore com embevecimento, em vez de arrasá-la a marteladas?

No entanto, se a acusação carece de base, não lhe faltam adeptos em revezamento perpétuo –a menos que se trate de um único cara obsessivo, quem sabe algum desafeto esquecido dos tempos da faculdade, que fica trocando de nome.

Não, a dona Nilza, minha melhor professora de português, não criou um vândalo ao abrir meus olhos para as delícias da análise sintática naqueles idos dos 1970, no colégio estadual Souza Dantas, em Resende (RJ). Ela se ofenderia com a calúnia, o que talvez fosse divertido; era meio brava.

Ocorre que, depois de estudar a gramática normativa na escola, eu cresci. Como jornalista e escritor, comecei a desconfiar que língua é um troço muito maior do que qualquer compêndio de regrinhas.

Se pensarmos bem, nada é mais óbvio do que isso. Por mais que a gente valorize, digamos, o caderno de receitas herdado de uma avó que cozinhava divinamente, ninguém é maluco de dizer que naquelas páginas estão contidos todos os sabores e saberes sobre culinária, nutrição, agricultura, engenharia de alimentos e história social da comida.

Metaforicamente, é esse o papel dos estudos linguísticos: aplicar o método científico à expansão do nosso conhecimento sobre as línguas, organismos vivos que nascem orais e se renovam todos os dias –até que, não tendo mais falantes, morrem.

Algumas das inúmeras palavras que nos definem como falantes brasileiros da língua portuguesa - Heloisa Seixas

Enquanto isso, o caderno da vovó, que ensina a fazer determinados pratos de determinada forma, não perde a sua função. Vamos supor que, pelo contrário, a comida da velha senhora, aquela danadinha, seja do tipo mais valorizado pelas camadas poderosas e influentes da sociedade.

Composto por gramáticas tradicionais e suas versões diluídas –dos manuais voltados para concursos públicos às "páginas de português" que pululam na internet–, todo o aparato normativo é comparável a esse caderno.

Diz respeito a uma fatia única, embora importante, do universo linguístico: a norma padrão ou culta, que vem a ser esta em que escrevo e cujo domínio é socialmente recompensado. A culinária da vovó, que aliás era nascida em Lisboa –não sei se já mencionei isso.

Que a língua tem múltiplas camadas além da abarcada pelas receitas da velha é relativamente fácil de compreender. Encontra mais resistência a ideia, não menos verdadeira, de que tudo isso –inclusive o festejado caderno de delícias tradicionais– se submete ao fluxo da história.

Nada na língua está escrito na pedra. Em movimento lento, lentíssimo, mas constante, ela se refaz o tempo todo e vai encontrando novos caminhos por decisão irrecorrível de um soberano: o povo que a fala. Ou seja, todo mundo –e ninguém.

É aí que o reacionarismo gramatical se encrespa. Como assim, querem mexer nas receitas da vovó? Trocar banha de porco por azeite extravirgem? Não se respeita mais nada? Isso é vale-tudo! Destruição!

São histéricos, coitados. Se conseguissem relaxar só um pouquinho, se divertiriam muito mais.

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