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Bióloga e neurocientista da Universidade Vanderbilt (EUA).

A estatística estapafúrdia do que já era sem ainda ser

Sem contexto, números são apenas números e atendem ao desejo do dono

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Por uma conjunção feliz de semestre sabático, ciência e vacinas, pude vir passar o aniversário da minha filha com ela, no Rio, precedido, num duplo golpe de sorte adicional, pela sua formação como cientista política e pelo nascimento da afilhadinha dela, Luna. Nascimentos são sempre mágicos: aquele instante em que a gente para de achar a vida algo perfeitamente normal e se dá conta de que gerar uma vidinha nova é realmente fabuloso. Além disso, descobrir-se não mais estudante, e sim mais um indivíduo supostamente produtivo no planeta, é algo que convida pausa para reflexão.

Donde minha filha ter acordado filosofando, do alto dos seus recém-completos 22 anos vividos: "Mãe, você já pensou que como sempre tem gente grávida no mundo, o número médio de esqueletos por pessoa é sempre maior do que um? E em média, também tem mais de um cérebro por corpo?".

De fato. Fui olhar, e mais do que uma em cada 100 pessoas (mulheres, homens e não-binários) no Brasil leva em si dois cérebros e dois esqueletos —ou mais! Daria uma senhora manchete de jornal: "Cientistas mapeiam vida em planeta e descobrem 100 milhões de seres vivos com 102 milhões de cérebros —como assim?".

Grávida com a barriga pintada participa de concurso de dança em hospital público de Lima, no Peru - Enrique Castro-Mendivil/Reuters

A estatística perfeitamente correta ainda que biologicamente estapafúrdia serve como lembrança de que, sem contexto, números são apenas números e atendem ao desejo do dono.

Por exemplo, é fácil fazer um número de mortes parecer mais alto ou mais baixo do que é: basta achar o referencial que atende à necessidade da vez. Mortes... por habitante? Por caso? Por pessoa vacinada?

A estatística descabida de mais de um cérebro em média por pessoa no planeta (e não, não temos um segundo cérebro no intestino, por favor) remete também à lenda do "cérebro médio", ou "normal".

O cérebro "normal", calculado matematicamente como referência para estatísticas e exames de mapeamento de funções, não existe. Cada um de nós tem um cérebro ligeiramente diferente dos demais, o que nos torna indivíduos, ao mesmo tempo que semelhante aos outros, o que nos torna membros da mesma espécie, seres humanos reconhecíveis como tais. Semelhantes, mas diferentes. Semelhantes, E diferentes.

A estatística sem sentido lembra ainda que a vida, assim como a morte, é um processo.

Luna ao mesmo tempo não existia e já vivia nos corpos de sua mãe e pai antes das duas partes se encontrarem, como tantas suas outras irmãs e irmãos que ao mesmo tempo já são e nunca virão a ser.

Aos meus alunos, pergunto "Quando a vida começa?" e os deixo se darem conta de que toda vida ao mesmo tempo já vinha sendo e aos poucos passa a ser. A questão, de fato, é quando o segundo cérebro e esqueleto, em algum estado de formação, passam a contar como uma nova pessoa, arredondando a estatística.

No caso de Luna, a resposta agora é óbvia. Bem-vinda, querida.

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