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Autora narra a demência e a morte do pai com elegância que emociona

Em 'John', filha se despede da mente e do corpo do pai enquanto lida com um delírio de dissolução

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Nas minhas fantasias persecutórias (que costumam ser bem realistas), acredito que autores elegantes e eruditos tenham certo horror de escritores autorreferentes e rasgados. Do lado de cá, a coisa não é muito diferente, autores que ignoram o próprio fígado em nome de uma estética mais elevada, cronistas que entopem seus textos com 20 referências de pensadores (e não trazem nenhum único exemplo do que corre em suas veias) e escritores que racionalizam suas emoções até perderem qualquer resquício de alma latina me dão nos nervos.

Comecei a ler este "John", de Julia de Souza, um pouco na defensiva. Será que ela vai falar da dor e do luto de perder um pai tão amado e brilhante, depois de acompanhá-lo por dez anos com demência, sem chafurdar na lama e armada do clássico preconceito de um texto autobiográfico parecer popular ou "uma literatura menor"?

Capa do livro 'John', de Julia de Souza - @juliadesouza/Instagarm

Julia deu um nó na minha cabeça. Com toda a sua elegância e erudição (repito as palavras de propósito) e algum medo de parecer dramática e burguesa "afinal, a quem interessa o luto do outro?", a autora me emocionou e inquietou mais do que muitas obras rasgadas, chafurdadas e autorreferentes.

Após ler "Diário de luto", obra de Roland Barthes sobre a perda da mãe, a escritora diz ter sentido um misto de "identificação e repulsa", achando o texto tão autocomplacente, infantilizado e maníaco que se pergunta se o Édipo do escritor não se constrange. A partir disso, teme que seus escritos sobre a morte do pai possam soar narcisistas e vulgares: "perco a elegância ao me permitir a extensão desse luto"?

Professor universitário, intelectual, preso político da ditadura e leitor obstinado, John foi um pesquisador do sistema cognitivo e neurológico dos seres vivos "mais precisamente das abelhas". Nos últimos dez anos de vida, em que sua mente foi de "sinais de desorientação mais graves" até o diagnóstico de demência, Jonh parou de ler e sentiu minguar "as linguagens oral e escrita". Perto do fim, ele lançava à filha um olhar "vazio, lavado, que talvez pudesse receber tudo, abarcar tudo". Julia recebia esse olhar com como se ele pudesse engolir tudo: "me engolir".

A filha se despede da mente e do corpo do pai enquanto ela própria lida com um delírio de dissolução. À medida que o pai perde suas histórias e sua memória, será que ela também pode desaparecer? Criada para ser livre e independente, a mulher retoma a menina psiquicamente fundida com o homem que um dia foi responsável pela sua constituição como sujeito.

Apesar de Julia de Souza acreditar que um corpo em agonia "não se rende a nenhuma interpretação", a possível narração que ela faz da doença do pai (e da própria doença: "Como se a loucura também fosse uma espécie de expertise") é tão rara e delicada quanto austera e analítica, uma dubiedade que lembra a transformação da literatura de Annie Ernaux após a morte do pai.

No entanto, ainda que cada parágrafo deste ensaio pareça guardado por um certo manto de refinamento e dureza, a aura meio esfíngica da autora não é suficiente para esconder que ela está exposta e em carne viva. O resultado, além de literatura excepcional, é de uma coragem tremenda.

John

Avaliação: Ótimo

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