Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi
Descrição de chapéu Todas É Coisa Fina

O sucesso literário como método de vingança

Com pouco mais de 20 anos, Édouard Louis considerava que já tinha vivido muito

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Com pouco mais de 20 anos, Édouard Louis considerava que já tinha vivido muito e que talvez fosse "tarde demais". Era hora de se dedicar integralmente à sua transformação, palavra que define toda a obra literária do autor (e toda a sua obsessão).

Mudou de cidade, mudou nome e sobrenome (nascera Eddy Bellegueule), mudou o jeito de falar, de andar, de comer, e ainda passaria por várias cirurgias em nome de uma aparência mais aristocrática.

Durante a infância e a adolescência, foram marcantes as experiências com o preconceito, a miséria e a fome. Seu pai não continha o incômodo odioso pelos trejeitos afeminados do filho; sua mãe o obrigava a implorar por comida aos vizinhos; seu primo foi morto na cadeia; seu irmão se tornou alcoólatra muito novo, e todos os homens da família, desde seu bisavô, tinham o mesmo destino precário: abandonavam os estudos muito cedo, trabalhavam na fábrica "moedora de ossos da coluna" com salários irrisórios e acabavam doentes.

homem loiro de jaqueta preta coloca as mãos nos bolsos em frente a parede escura de tijolos
O escritor francês Édouard Louis, autor de 'Mudar: Método' - Andreas Terlaak/Lumen

Ao tentar fugir da vila de operários onde nasceu, no norte da França, e da sua sina familiar ("Desejei fugir da minha infância mais do que tudo, desejei escapar do céu cinza e da vida condenada dos meus amigos de infância, privados de tudo pela sociedade"), Édouard trabalhou como garçom, atendente de padaria, zelador, "arrumador" em teatros, professor particular e garoto de programa. Mas foram os diplomas em filosofia e sociologia em uma das instituições de ensino superior mais famosas da Europa que dariam a ele o sonhado passaporte para uma realidade suficientemente longínqua e diferenciada da sua família e do seu passado.

Contudo, seu interesse em ser um intelectual parisiense de esquerda viria mais tarde, depois de assistir a uma palestra do escritor Didier Eribon (que se tornaria um de seus grandes mestres e amigos pessoais). Antes disso, e por algum tempo concomitantemente, sua maior fixação (que toma boa parte desse retrato tão detalhista e corajoso) era ser salvo pela riqueza e ser vingado pelo sucesso. Custasse o que custasse.

Interessante pensar que seu primeiro livro, "O Fim de Eddy" —obra de grande sucesso internacional que mudou em definitivo a vida de Édouard Louis, trazendo-lhe liberdade financeira e possibilitando que viajasse e conhecesse tantas culturas—, nasceria justamente de um aprisionamento: "Eu poderia olhar para todos aqueles que tinha conhecido na primeira parte da minha vida, você e todos os outros, e dizer, vejam onde estou agora. Vocês me insultaram, mas hoje sou mais poderoso do que vocês, vocês se enganaram me tratando como fraco e me desprezando e vão sofrer por causa dos seus erros. Vão sofrer por não terem me amado. Eu queria vencer para me vingar".

Impossível ler este "Mudar:Método" —e todos os outros de Édouard— sem pensar em Annie Ernaux, sobretudo nesta passagem, que lembra demais "O lugar": "Eu era o primeiro na nossa família a começar uma formação no ensino médio, quase ninguém na nossa cidade atravessava essa barreira. Entendi que o colégio simbolizava o início da nossa separação, sem volta possível". Ambos são filhos de operários, criados por pais pouco escolarizados, e, por desejarem ascender financeira e intelectualmente a fim de "vingar sua raça", sentiram a dor (e, com ela, a necessidade de dar conta dessa solidão pela escrita) de se distanciar de suas bases tortas de afeto.

Todas as "tentativas de fuga", todos os pormenores —chamados por ele de "métodos"— para se tornar outra pessoa, além das percepções afiadas de que os corpos dos ricos (e seus movimentos) são mais eretos e equilibrados e de que as casas dos ricos têm livros e conversas, em vez de uma televisão ligada o dia inteiro, como na casa dos pobres, são contados para seu pai e para Elena, a moça elegante e erudita (criada por uma família que ouvia música clássica durante as refeições) com quem ele tem uma primeira relação íntima e amorosa, ainda que não sexual ("Tentava esquecer você. A frase que voltava à minha cabeça, que eu repetia, era que eu devia viver todas as vidas").

Sobre os milionários com quem fez amor, "homens que tinham em suas salas obras de Picasso, Monet, Soulages, que só viajavam de avião particular e que ficavam em hotéis cuja diária, uma única, custava o que toda a minha família ganhava em um ano de trabalho", o autor narra ter ficado amigo de alguns, sentido nojo e até mesmo raiva de outros, mas jamais ter se apaixonado por nenhum deles.

Obra-prima para quem, como eu, tem paixão por autossociobiografia, este é mais um texto de Édouard Louis que deixa bem clara sua necessidade medular de conexão, de narrar-se para existir e para jamais se esquecer.

Mudar: Método

  • Preço Preço 74,90 (240 págs.)
  • Autoria Édouard Louis
  • Editora Todavia
  • Tradução Marília Scalzo

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