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Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

Descrição de chapéu chuva

De catástrofe em catástrofe, ao pobre tudo, menos a própria vida

Encurralado, a ele se reservou tudo, toda a água, a lama, o desespero

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Ao pobre tudo, menos a vida digna. Se olha para o céu, buscando alguma resposta para as infinitas questões que desenham os traços de seus flagelos, cai um pé d’água para lavar suas feridas. Fosse a chuva uma condição da sobrevivência, como é, principalmente na memória daqueles que beberam poeira da seca na infância agreste, ao pobre tudo seria uma bênção. Só que o que reservaram a ele foi a falta de um lugar seguro, de um chão firme, de uma casa, de condições mínimas para morar e fazer moradia, de uma saída. Encurralado, a ele se reservou tudo, toda a água, lama, desespero, menos a chance de viver e chover sem medo.

Se aguarda meses por atendimento médico gratuito, algo essencial e de valor inestimável, irrompe uma pandemia e a primeira camada a morrer em massa é a sua, a do pobre, a quem tudo de ruim acontece primeiro —também em massa. Número de contaminados; depois alto número de mortos; depois alto número de pessoas sem acesso à vacinação; depois alto número de pessoas com sequelas. O depois sempre traz a vida curta ou custosa ao longo dos anos tentando amaciar um âmago tão calejado quanto as mãos. Ao pobre as maiores estatísticas, todas atestando contra sua existência.


Não há surpresa. Mora aí o incômodo da questão: a normatização da tragédia e seu trato sazonal, quando à porta já rebentou a desgraça. "Me ver pobre preso ou morto já é cultural". Há 21 anos esse verso foi solto, resgatando outros mais de 500 passados. Firmou-se como um dos trechos que compõem, das músicas do povo, a que está entre as mais emblemáticas, por atestar o que, no calado do desespero e da desesperança, já se sabia: "Negro Drama". Com cor, origem, marca. Ao pobre todas as promessas, menos a de que escuro, tal qual ele, não será o drama de sua vida. Escuro será o tom do seu orgulho. Hoje, porém, o drama neste país ainda tem cor exclusiva.

Nativo, originário, africano, brasileiro nato, nas beiras, nas bordas, onde cabe quem "tem cara de pobre"? Em qualquer lugar desde que seja longe. Poder público? Governos? Democracia? A maioria é quem? Em quais contextos se desenha e se apaga a massa pobre? Maioria atingida pelas catástrofes, pelas crises econômicas, pelas doenças, pelo crime, por quem diz combater o crime. Minoria a passar dos 60, 70 anos.

Persiste, contudo, uma certa fé na política do dia a dia, nas negociações e estratégias que —pelas vias da diversidade de ideias, identidades e sensos de mundo— concedem ao pobre mais alguns aniversários. É se ajudando que se vai. Reside nela, na fé em suas mais variadas manifestações, a insistência pelo direito de cuidar dos seus, vê-los crescer. Fé em nós e no poder de se esquivar do futuro condenado à verdadeira herança maldita da nação, a desigualdade. É o básico, não? Não. Ao pobre tudo, menos o básico.

Aqui, nesta Folha que se anuncia como um jornal a serviço do Brasil, o pobre é o Brasil em sua maioria e, por isso, quantas vezes forem necessárias, esta coluna irá tratar do Brasil com rosto, nome, endereço, memória, sabedoria e luta por sobrevivência. Esta e tantas outras que dedicaram seu espaço ao mínimo —trazer à tona tudo o que falta ao pobre: o inegociável direito à vida digna.

Nunca foi aceitável se conformar com a díspar realidade social deste rascunho de democracia. Nunca será. Menos aceitável ainda é achar que o pobre é conformado com a condição que lhe foi imposta pelo status quo. Como diz o título de outra música também de impacto político, "Calm like a bomb", ou "Calmo como uma bomba", em tradução livre. Há quem se cale por desespero, incapaz de liberar a torrente de dor que lhe sufoca. Entretanto —e haja tanto— a indignação e revolta também são de direto do pobre. Que a todos seja garantido o direito ao tanto de vida merecida. E haja tanto.

Aos interessados em contribuir com doações para as vítimas afetadas pelos alagamentos e deslizamentos no litoral norte de São Paulo, acessem este link.

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