Veny Santos

Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

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Pobres querem sair da fome, e não mais discursos sobre diversidade política

Falamos muito em racismo estrutural de modo vazio, como se bastasse evocar o assunto para solucionar a 'questão racial'

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Por que aguentamos tanto? Perguntei-me durante toda a semana. Escrevi, em outros momentos, sobre a constante atmosfera fúnebre que nos mata em vida. Tal questão sempre esteve comigo, desde muito cedo, pois vi ao meu redor gente que assim seguia —rumo a lugar algum, sempre carregando diferentes pesos que lhes arreavam as pernas.

Passei por livros que relatavam as mesmas histórias que eu não havia contado a ninguém. Aguentar, suportar, continuar, tentar, falhar, sofrer, perecer. Infinitivos postos como estado natural, para além da vontade de quem desejaria conjugá-los. De quem desejaria agir diferente.

Por quê? Por que aguentamos? Por que aguentamos tanto? Com o passar dos anos, o léxico do realismo fora dos tempos vários da literatura me fez compor a pergunta por completo. Palavra por palavra, a dúvida nasce da inquirição cotidiana. Entender o porquê de tudo ser como é. Mais do que curiosidade infantil, é também estratégia de sobrevivência.

Operação das Polícia Civil, Militar e GMC no fluxo da cracolândia na rua Frederico Steidel, esquina com a avenida São João, para prender traficantes - Danilo Verpa - 19.mai.22/Folhapress

O povo pobre aguenta fome. Suporta violência policial. Ultrapassa os limites da própria saúde e segue caminhando atrás daquilo que puder lhe render algum suado no final do dia. É aquele que nunca consegue ter terra em seu nome —se consegue, é no final da vida, quando o que sobra é o que, ao menos, não faltará para suas crias. Sobra o que falta.

O povo pobre resiste ao deboche, à humilhação, ao descaso, à deseducação, à negligência, ao roubo, só não à morte porque ela mata. Ainda há, no povo, os que a desafiam por ter fé de que alguém, em outra realidade, irá finalmente ampará-los. Acende velas que nem sempre conseguirá apagar.

O povo pobre, quando aguenta, sobrevive como pobre —e pode. É pobre porque não tem outra saída senão aguentar. Infinitivos postos como estado natural.

O homem do gueto vê o dono do terreno cobrar altos aluguéis em sua comunidade, mas não vê investimento para reparar os muitos problemas de infraestrutura do local. No máximo, sabe ele e o proprietário que o departamento de inspeção urbana irá cobrar multas leves.

Esse homem do gueto vê o policial na esquina espancar um bêbado e, ao mesmo tempo, aceitar dinheiro de um dos agentes que controlam o esquema de extorsão. Ele vê, esse homem do gueto, sua quebrada cheia de lixo não recolhido e sabe que isso é resultado da baixa consideração política que o poder público tem pela região. Percebe, também, que nas escolas não ensinam sobre conquistas históricas de seu povo.

O homem do gueto sabe quem compõe o conselho educacional. Por isso, não tem interesse em discursos sobre "diversidade e pluralidade políticas". Gueto preto, instituições brancas.

É do povo pobre que vem esse homem descrito acima, e escrito, em 1967, por Kwame Ture —anteriormente conhecido como Stokely Carmichael— e Charles V. Hamilton, em um dos mais importantes livros sobre relações raciais, "Black Power: The Politics of Liberation", ou poder negro: a política da libertação.

No primeiro capítulo da obra, "White Power: The Colonial Situation", ou poder branco: a situação colonial, são expostos aspectos políticos, econômicos e sociais contemporâneos dos Estados Unidos que remetem à condição de colônia que submeteu africanos à escravidão. No trecho em que citam o homem do gueto, os autores reforçam a ação do racismo institucional como elemento que define as relações entre pretos e brancos a partir da lógica do colonizador —dominar territórios, seus povos e seus recursos.

Entretanto, racismo institucional e colonialismo não são perfeitamente semelhantes, o primeiro, por sua vez, conta com sofisticados recursos de dominação e, entre eles, está justamente a forma como as instituições operam para manter o povo pobre sempre dentro de suas estruturas. Aguenta, esse povo, porque não tem outra saída —as disponíveis o levam para os mesmos cômodos da grande casa. O problema é criado pelo que os autores chamam de "a estrutura do poder branco", oriunda da colonização europeia que se espalhou pelas Américas nativas.

Até mesmo quando tais instituições concedem espaço para "representatividade", este é dado àqueles que se submetem e agem de acordo com o que elas determinam. É fazer com que se sinta menos escravo aquele africano porque deixou de trabalhar nos campos de algodão ou café e foi para dentro da casa-grande. Não saiu da estrutura. Mudou de incômodo.

Fala-se muito em racismo estrutural —inclusive, às vezes de maneira vazia, como se bastasse evocá-lo tal qual "coringa na manga" para responder às complexidades da "questão racial". Não é o caso, sabemos. O conceito se desdobra de inúmeras maneiras e isso exige que haja aprofundamento junto da atenção voltada para as características evidentes que compõem o poder vigente. A começar pela cor da maioria das pessoas que ocupam cargos estratégicos nas instituições que integram estruturas sociais.

Quem aguenta tanto e quem faz com que sejam forçados a aguentar? Ou não faz para que, justamente, mantenha-se o outro aguentando? Assim como o povo pobre tem na sua composição tons majoritariamente escuros, também tem cor definida a maioria que comanda as instituições, claro. Instâncias de poder majoritariamente brancas não são suposições, são fatos.

Por que aguentamos tanto? Será que pelo fato de não termos outra saída? Por estarmos confinados nesta desigualdade social nefasta que traduz o status quo? Aguentamos tanto por termos esperança de que esta estrutura irá, em algum momento, nos salvar? A mesma estrutura que absolve algozes e arquiva crimes contra a maior parcela da população como se fossem apenas rusgas banais? Aguentamos por esperança ou desesperança? É possível imaginar a organização do povo pobre fora dessa estrutura? E se um dia parássemos de depender dessa estrutura ou estivéssemos em uma que nos tratasse com dignidade?

Muitas perguntas, pouco tempo para pensar nelas. Mais uma vez, o realismo transborda das páginas e escorre quente pela pele. Há de se carregar a vida como ela, infelizmente, ainda é. Não esqueçamos, por outro lado, que tais questões não são de hoje, e muito foi construído por quem deixou de procurar saídas prontas para, então, pensar em como criar as próprias.

Talvez, as respostas para tamanha persistência ao longo dos séculos estejam no trabalho dos que atuam para que o estado natural seja composto, finalmente, por outros infinitivos: reeducar, reunir, reagir, resistir e libertar.

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