Veny Santos

Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

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Em 2023 queremos de volta os 21 anos que separam as realidades de São Paulo

Mapa da Desigualdade revela diferença de décadas entre as expectativas de vida de quem vive no Jardins e em Iguatemi

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A soma. Em 21 anos você nasce, cresce, entra para a escola, aprende o que tem para aprender e consegue se formar. No meio do caminho, consegue um primeiro emprego, faz um cursinho, presta vestibular para, então, iniciar a faculdade. O trabalho vira estágio, o estágio vira trabalho novamente, surge a chance de sair da casa dos pais e dividir apartamento com alguém.

A vida cresce, apresenta dificuldades, mas também possibilidades. Vinte e um anos se passaram e mais vinte e um estão por vir. Futuro? Casa própria, carro, um bom plano de saúde, filhos, viagens, investimentos, aposentadoria, sossego. Chegar aos 80 anos com um jardim de lembranças bem cultivadas.

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Vista aérea da divisa entre Paraisópolis e Morumbi, em São Paulo - Gabriel Cabral/Folhapress

A subtração. Em 21 anos você nasce, cresce logo cedo, às pressas, precisa ajudar em casa, estudar e não repetir porque a professora disse que correria o risco de puxar carroça. Antes de terminar a escola (se terminar) já necessita de emprego. Não tem plano de saúde, nem terapia. É tudo corrido, com pressa, sem massagem. Tropeça uma vírgula na outra —entre uma pausa e outra— engasgando com a comida que não mastiga, só engole para ir rápido e estufar a barriga sempre no negativo.

Aos 21 é maior de idade. Tudo corrido e na correria há risco mesmo sem apresentar risco: um enquadro, um olhar torto, um temperamento alterado do outro lado da farda, uma forja, nenhum escudo para se proteger, rodou aos 21, rodou para sempre. Se chegar a completar duas décadas e um ano, é mistura de alívio com agonia renovada. Será que terá mais 21? Se tiver, serão seus últimos.

No extremo das geografias urbanas, um mapa revelou o buraco no qual caberia 21 anos de vida. A fissura que divide literaturas vivas e cotidianas —escritas nos cantos que ninguém lê— das epopeias enclausuradas nas mansões dos herdeiros trajados de heróis define de quem se subtrai e a quem se soma.

O que eu quero para 2023? Quero 21 anos de volta.

Neste 2022 prestes a se findar, divulgou-se mais uma edição do Mapa da Desigualdade, iniciativa da Rede Nossa São Paulo em parceria com outras instituições. Nele, diversos marcadores traçam os caminhos pelos quais os olhos do dia a dia já não percebem a realidade latente: a das distâncias sociais. Distâncias essas que chamam atenção para o fator primordial da humanidade contido no direito de existir com dignidade. Existir com chances de permanecer existindo.

No estudo, a longa lista com a expectativa de vida nos bairros de São Paulo revela uma diferença de 21 anos entre quem vive nos Jardins até os 80 e quem morre em Iguatemi aos 59. Iguatemi, zona leste, próximo ao município de Santo André. Cidade Tiradentes, Jardim Ângela e São Rafael também, 59 anos. Extremos demais para que o poder público vá além da lógica biopolítica de se fazer viver um grupo e deixar o outro morrer.

Escrever, refletir, seguir abordando temas que nunca variam. Na constante composição de textos que atuam como registros do status quo por outra perspectiva que não a fria e exclusivamente descritiva, não nos resta muito senão buscar em nossa própria diversidade estratégias de sobreviver com 21 anos a menos. Nós, os pais, filhos, amigas, irmãs, povo que, como versou o Trilha Sonora do Gueto, é "programado para morrer". Parece até privilégio poder morrer de morte morrida, como diriam as avós.

No próximo ano e nos 21 adiante o que se quer é o mínimo. Fora das redes sociais ou do jornalismo que se rendeu à vontade de financiadores de golpes e adultos mimados a pautar periódicos como se fossem seus diários pessoais, tem toda uma gente cuja morte precoce é esperada e ainda assim permanece em luta. Gente que não tem tempo para se importar com reação do mercado, que não chamaria de gastança R$ 600 para comida, água, luz, nem qualquer outro valor a garantir remédios gratuitos, reforço na educação, acesso à dignidade, à vida. Gente cheia de expectativa que tem o direito de tomar de volta 21 anos roubados, substituindo a vela do funeral pela do aniversário.

É o que queremos para 2023. Vinte e um anos de volta.

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