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Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

Dizer adeus aos pais

O que fazemos com a perda de nossos pais e mães define nossas vidas

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Nossos pais nos deram pouco, foram relapsos e egoístas ou deram demais, sendo intrometidos e demandantes. Por falta ou excesso, nunca estiveram ali na medida exata dos nossos desejos e expectativas —sabe-se lá quais sejam.

O intervalo entre o que eles nos deram e nossos anseios é o espaço que usamos para justificar a melancolia pelo que acreditamos que poderíamos ter sido, mas não fomos. Se eles tivessem ficado mais em casa, se tivessem mantido o casamento ou se separado, se nos escutassem mais ou nos incentivassem mais, ou gostado um pouco mais de nós, hoje seríamos bem sucedidos e felizes.

Com quem comparamos nossos pais, cada vez que tentamos justificar nossas frustrações? Com os pais dos outros —idealizados por não serem os nossos—, mas, acima de tudo, com nossos próprios pais durante nossa infância.

O mais encantador ao ver uma criança brincando é perceber sua total entrega ao presente, ao aqui e agora. Observando-a entretida, veremos que, de tempos em tempos, ela se volta à procura do olhar de seus cuidadores. Afinal, não custa nada checar se o céu continua sobre nossas cabeças. E os pais costumam estar ali, mais ou menos atentos, mais ou menos de saco cheio.

Quando uma onda chega, alguém vem resgatá-la, no mais das vezes. Um ser gigante, que com apenas uma mão a salvará do afogamento ou, no mínimo, do caldo. De sorte que a criança mal chega a crer verdadeiramente no perigo, pois a garantia e a responsabilidade estão nas mãos do outro.

Mal sabem elas como temem e sofrem os adultos que por elas zelam, fazendo cara de que tudo está sob controle. Nunca é demais reforçar a importância dessa sensação de segurança para que haja o que chamamos de infância —condição que não existe para grande parte das crianças brasileiras, apesar dos esforços hercúleos de seus pais.

Já na adolescência, entra em jogo a necessidade de enfrentar desafios e perigos, embora não acreditemos totalmente nos riscos envolvidos. Fase na qual se arrisca muito tentando descobrir, afinal, de quem são os superpoderes.

Vista aérea das covas recém abertas e dos túmulos onde foram sepultadas as vitimas do Covid-19 no cemitério da Vila Formosa, na zona leste de Sao Paulo - Lalo de Almeida/ Folhapress

Reconhecer que os pais só fazem o possível nos remete ao desamparo humano —que, insisto, não deveria ser perceptível no comecinho da vida. Para driblar a insuportabilidade da vida damos um jeito de deslocar os superpoderes para um deus, cujas características podem ser mais ou menos toscas.

Há versões do divino mais sutis e éticas e outras nas quais se renova votos em um homem branco onipotente arbitrando cada passo de nossas vidas, distribuindo privilégios para os filhos bajuladores e dando cascudos nos outros. Que não se assanhem os ateus: Freud já apontava, no belíssimo “O Futuro de uma Ilusão”, as fantasias onipotentes de garantia e verdade absoluta que podem se esconder nos cientistas.

Foi Freud também quem afirmou que a morte de um pai é das maiores perdas vividas, só superada pelo impensável luto de um filho. Está aí a obra prima “A Interpretação dos Sonhos”, escrita sobre o abalo da perda de seu pai, para testemunhar o destino que o criador da psicanálise deu para seu sofrimento.

Continua sendo surpreendente que a perda previsível e necessária dos pais possa ser a derrocada psíquica de muitos adultos, eles mesmos já pais de outros adultos. O reconhecimento da fragilidade dos pais —velhos, doentes ou mortos— leva muitos a se reinventarem. Alguns menos honestos consigo mesmos saem à caça de substitutos dos pais onipotentes da infância para colocar em seu lugar. Não raro, pagamos coletivamente o preço da fantasia de que haveria entre nós messias.

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