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Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de "Criar Filhos no Século XXI" e “Manifesto antimaternalista”. É doutora em psicologia pela USP

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E se deitássemos o Brasil no divã?

Freud quis saber qual nossa participação no sofrimento do qual nos queixamos

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Freud escutou Dora (Ida Bauer), uma jovem de 18 anos com sintomas histéricos, que se queixava ao pai das investidas de um homem mais velho. O pai fazia vista grossa, pois tinha um caso com a mulher do dito cujo.

O quatrilho formado pelo pai, pela mãe, pela amante do pai e pelo tiozão do pavê, que a assediava, a enredou no auge de seus questionamentos adolescentes sobre o amor, o sexo e sobre ser mulher. Coube à ela produzir os sintomas que permitiram que fosse escutada.

A genialidade de Freud aparece na forma como ele busca implicar Dora em seu próprio sofrimento. Pai cínico, mãe omissa, amante resignada e marido canalha usavam claramente a jovem em seu enredo amoroso mas, ainda assim, era fundamental que ela pudesse assumir qual parte lhe cabia nesse latifúndio. O que capturava Dora nesse jogo erótico e com o que ela se identificava ao permanecer nele? A chave para tirar o paciente do vitimismo, sem negligenciar o enredo do qual faz parte, é ajudá-lo a reconhecer para si mesmo o que ele fez com os limões que a vida lhe deu.

Rios de tinta foram derramados na discussão desse caso considerado fundamental nos estudos sobre histeria (dica: acaba de sair uma edição caprichadíssima dos cincos casos publicados por Freud: "Histórias clínicas: cinco casos paradigmáticos da clínica psicanalítica", pela Editora Autêntica).

Mas, e se o paciente fosse o Brasil, saindo do lugar de bebezão deitado em berço esplêndido em direção ao divã? Imagino que chegaria ao consultório contando as infindáveis violências e injustiças que sofreu e sofre, capazes de fazer lacrimejar o analista mais experiente. Mas se fosse experiente mesmo, o analista deveria, como precondição para começar uma análise, implicar o Brasil em sua própria queixa. Fazê-lo reconhecer que o sintoma da qual se queixa foi construído, paradoxalmente, para esconder, mas também para denunciar, sua verdade.

O Brasil contaria a história de sua família, na qual o patriarca branco violenta a mulher indígena, mata seus parentes, para depois escravizar pessoas negras a quem violenta sucessivamente. Contaria da chegada de outros brancos, que mesmo não participando desse início, continuaram a se beneficiar dele e a reiterá-lo infinitamente. É uma história triste, que o paciente jura que é passado e que não tem nenhuma relação com a desgraceira da qual se queixa: violência, injustiça social, racismo, misoginia. Seja branco, negro ou indígena, o Brasil não quer saber como se formou sua família, porque os rastros dessa violência não estão longe, mas na mesa de jantar, à sua frente, hoje.

Ver-se implicado na manutenção do horror que se imputa ao passado é doloridíssimo, por isso o desejo de ser curado do sintoma vem com o pedido mágico de não ter que mudar nada. Mas se engana quem pensa que dá pra fazer esse arranjo com o sintoma e sair ganhando. O analista não tem como compactuar com essa fantasia, porque não há cura sem o confronto com a verdade. Assim como não há cura sem algum ganho de liberdade. O sintoma deve ser tratado, mas sua mensagem não pode ser apagada, sob pena de repeti-lo eternamente com outras roupagens.

Domingo o Brasil vai enfrentar seu sintoma-Bolsonaro e nada poderá deter a esperança e alegria em fazê-lo. Mas não podemos ignorar que ele é apenas o retrato das mazelas que insistimos em não encarar e que se renovam, como dizia Lacan, com nossa paixão pela ignorância.

(Em tempo: leve uma colinha decente para votar em senador, deputado federal e estadual. São eles que decidem os rumos desse país.)

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