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Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de "Criar Filhos no Século XXI" e “Manifesto antimaternalista”. É doutora em psicologia pela USP

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Como a série 'The Last of Us' nos assombra

É duro ver para onde ruma a sociedade moderna

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Tenho várias reservas a séries com temas apocalípticos que atualmente infestam a indústria cinematográfica. Como toda indústria, seus produtos atendem a demandas do mercado que revelam e moldam nossos interesses. O prazer de ver o lugar onde se mora em ruínas, tão frequente nessas produções, demonstram nossa profunda ambivalência pelo que nós mesmos construímos. A depender das ficções que criamos, fica claro quem, na eterna disputa entre Thanatos e Eros, está ganhando.

Ao assistir "The Last of Us", tive a grata surpresa de descobrir que as cenas nas quais seres humanos infectados por fungos não são o centro da história. Sempre patéticos, pouco criativos e exagerados, esses personagens poderiam ser substituídos, sem grande perda para o enredo, por qualquer outro factoide que justificasse o desmantelamento da sociedade mundial.

Seja a falta de água, o aquecimento global, o esgotamento dos recursos naturais, "The Last of Us" é muito mais sobre o salve-se quem puder previsto para quando tudo começar a faltar para todos. Os cenários distópicos da série se passam em cidades hoje abastadas, mas não são diferentes de outros nos quais a penúria é uma realidade desde sempre. Na série desapareceram os oásis de opulência e ostentação que ainda existem. Daí o calafrio de assistir a um desfecho bem plausível para a destrutividade da sociedade moderna. Não sobra nada para ninguém.

A cada episódio, os dois heróis, o mercenário bonitão (Pedro Pascal) e a adolescente órfã (Bella Ramsey), encontram as diferentes soluções que a humanidade dá para as situações nas quais a sobrevivência de cada um depende do equilíbrio de forças dentro do grupo, a solução militar, fanatico-religiosa, isolacionista, científica… Cada uma desastrosa a seu jeito, menos a comunitária, claro, que vale uma das boas piadas da série. Vale a pena encarar a escatologia para aproveitar um roteiro excepcional, que evita subestimar o espectador.

Mas o que mais chama a atenção em "The Last of Us" é a construção da personagem Ellie, super bem interpretada por Bella Ramsey. Ali se concentra uma das questões fundamentais da nossa sociedade, aquela que diz respeito às novas gerações.

Ellie (Bella Ramsey) e Joel (Pedro Pascal) em cena de 'The Last of Us' - HBO Max

Ellie tem 13 anos e nunca soube o que é infância. Capaz de roubar, destruir e matar como um adulto mercenário, ela nos remete às crianças-soldados que existem pelo mundo hoje. Lembremos que a infância, essa criação do século 18 que visava preparar as crianças para o mundo adulto burguês, nunca contemplou todas. Ela não é a única, muitos grupos respeitam as crianças sem que tenham para elas o mesmo projeto de infância ocidental, pois nem todo cuidado e proteção oferecidos a elas visam transformá-las em empreendedores ou CEOs. Crianças indígenas, por exemplo, têm um outro modelo de infância a lhes servir de proteção e orientação.

Ellie, que, como muitas de sua idade, testemunhou e participou do pior que o humano é capaz, não deixa de ser, no entanto, uma criança. Uma criança sem direito à infância, mas, ainda sim, inexperiente e emocionalmente frágil. É nesse contraste que a personagem se agiganta, revelando a necessidade de um adulto a lhe servir de fonte de identificação e confiança. Se queremos que Eros tenha alguma chance diante da epidemia de humanos acéfalos devoradores de gente que se intensifica com as redes sociais, é preciso repensar o que queremos transmitir para a próxima geração.

Certamente, adultos mercenários não são a melhor opção. Mais do que salvar a humanidade do efeito dos fungos devoradores de gente, há que se pensar como salvá-la de si mesma.

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