Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Descrição de chapéu Mente

Pedaço do meu coração que anda

Nada poderia ser mais emblemático do que está em jogo na relação com a infância do que imaginar que as crianças são parte crucial de nosso corpo

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Chamou-me a atenção um vídeo do Instituto Alana que circula nas redes no qual se atribui à palavra pyã, que seria criança em guarani, o sentido de "pedaço do meu coração que anda". Não consegui confirmar nos dicionários disponíveis a veracidade dessa informação e, não sem constrangimento, ainda assim, farei uso da expressão.

O constrangimento vem do fato de que, depois de chafurdar cinco décadas na cultura europeia, os povos originários do meu país me sejam tão ou mais estrangeiros do que os do hemisfério norte. Feita a mea-culpa, me atrevo a explorar a beleza poética dessa suposta significação, mesmo que os créditos tenham que ser dados a quem tomou a liberdade de criá-la.

Nada poderia ser mais emblemático do que está em jogo na relação com a infância do que imaginar que as crianças são parte crucial de nosso corpo, aquela que associamos diretamente ao amor, nosso coração. Que um pedaço dele esteja perambulando fora de nós, está aí uma sensação que pais e mães conhecem bem.

Sentir na pele a alegria e a dor do outro como se fossem em nosso próprio corpo é algo que Lacan, utilizando os estudos de Bergès e Balbo, apontou como sendo a operação do transitivismo. Trata-se, por exemplo, da experiência da criança que, ao ver outra criança chorando, chora como se o ocorrido fosse com ela mesma. Identificados e até confundidos com os filhos, pais e mães sentem suas perdas e exultam com suas alegrias vividas em si mesmos.

Crianças em frente a uma área de vidros que dá para área externa do aeroporto
Crianças em aeroporto de Israel - Nir Elias - 5.mai.2011/Reuters

Não há nada de automático no vínculo que se estabelece entre pais, mães e filhos, pois a linguagem faz com que nossas experiências sejam eminentemente simbólicas. Essa relação não só não é dada pela natureza como ela envolve grande dose de coragem. A ideia de que um pedaço de nós perambula por aí sem que tenhamos controle sobre o que pode lhe acontecer parece bem apropriada para o tema e revela quão assustadora pode ser essa relação. Afinal, o sofrimento está garantido, não importando o quanto se venda a ilusão de que existiria predição, controle ou garantia na parentalidade. Sem assumir o risco da perda, não há como estabelecer uma relação dessa magnitude.

Quando nos deparamos com pesquisas que revelam a atual perda de investimento nas trocas pessoais, a falta de amigos íntimos e o desinteresse pelo sexo, devemos lembrar que uma sociedade que aspira eliminar o sofrimento humano não tem como apostar no amor e na intimidade.

A perplexidade com os dados precisa dar lugar à reflexão sobre o que nos faz tão covardes diante do outro. Podemos apostar nas violências das grandes cidades e na virtualidade como causas ou agravantes desses fenômenos, mas não podemos nos esquecer das expectativas irreais que nos rondam.

Testemunhamos a transmissão da ideia de que seria possível evitar as dores de cotovelo, as desilusões com amigos e os perrengues necessários para que se crie intimidade numa relação. "Positivo", "felicidade", "equilíbrio", "harmonia" são metas que ignoram a natureza dos afetos humanos, indiferentes aos paranauês da pós-modernidade. O amor é tudo menos isso e, para saber mais sobre ele, sugiro ler poesia.

Valho-me mais uma vez da inspiração, não comprovada, de que a tradução da palavra criança em guarani significaria "pedaço do meu coração que anda" para lembrar que a palavra criança não é a mesma que filho, ao qual me referi o tempo todo. Sabemos que os povos originários consideram todas as crianças responsabilidade da comunidade, não sendo imaginável a infância desassistida. Isso só é possível quando todas as crianças, filhos ou não, carregam consigo nosso coração.

Está aí uma coisa que deveríamos ter aprendido com eles há 500 anos.

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