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Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"

Descrição de chapéu internet

Causas ao alcance de um clique: a militância na era digital

Para um número crescente de pessoas, militar é preciso; viver não

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Na bibliografia sobre os usos sociais da internet, já no final dos anos 1990, discutia-se como a vida online estava reduzindo o esforço necessário para militar politicamente. Imagine-se o custo de tornar-se militante antes que uma rede de interações digitais conectasse todos.

Era preciso se juntar a um movimento ou filiar-se a uma organização, participar de reuniões, conviver, aprender os protocolos dos ativistas de uma causa específica, adquirir ao menos alguma informação, se não uma formação. Tudo isso demandava tempo, trabalho, energia e comprometimento.

Além disso, havia de lidar com certos desafios, como encontrar pessoas próximas que compartilhassem das mesmas causas, arcar com os custos sociais de discutir temas políticos sensíveis com desconhecidos e aceitar os níveis de afinidade ideológica disponíveis no seu ambiente social.

Hoje, quando em cada bolso há um celular e em cada um desses dispositivos um número potencialmente ilimitado de janelas digitais conectando-nos uns aos outros, os custos tradicionais associados à participação e ao engajamento político despencaram.

O militante de wi-fi e ar-condicionado é, de certo modo, o oposto do tradicional ativista de movimentos sociais ou sindicatos: em vez de assembleias, há um ambiente de interação social construído em uma plataforma digital; em lugar de formação e informação, uma autoeducação fast food política online em sites e redes customizadas de acordo com o gosto e a capacidade do freguês; ao invés do desconforto de passeatas e confrontos de rua, a tranquilidade de sentir-se engajado em melhorar o mundo apenas rolando telas em um notebook, tablete ou celular; no lugar da faixa, do cartaz e da palavra de ordem na rua, sob calor ou chuva, correndo o risco de sabe-se lá o quê, opta-se por postar furiosa e intensamente em favor da causa que se adota ou contra aquela que se detesta.

Junte-se à transformação digital das interações sociais a convicção de que "tudo é política" e se terá uma foto do nosso ativismo cotidiano. Tudo se torna uma forma de militância, um tipo de ação política coletiva, cujo propósito final é promover uma causa e melhorar o mundo. Isso significa, por outro lado, que se conferem seriedade política e comprometimento existencial a qualquer tipo de ação, pois, afinal, militar é coisa séria e nobre.

Ilustração de Ariel Severino para coluna de Wilson Gomes de 20 de agosto de 2024 - Folhapress

Milita-se pela "linguagem neutra" com a mesma seriedade com que se engaja em causas como a crise climática ou o combate à fome. Não faz muito tempo, referir-se a Dilma Rousseff como "presidenta" era uma posição política explícita e consciente. Era, tecnicamente, militância.

Entre os novos tipos de militantes, o caçador de supremacistas é dos mais intrigantes. O pressuposto é que o supremacista sempre pode ser detectado, mesmo quando se mistura à população, pois está constantemente "soprando algum apito de cachorro", ou seja, emitindo sinais que apenas outros supremacistas reconhecerão. O caçador de supremacistas, por sua vez, vigia implacavelmente fotos no Instagram, com paciência e perspicácia, até que um "gesto supremacista" revele o monstro moral disfarçado.

Já imaginaram como isso deve ser gratificante? Sem sair da poltrona ou largar o celular, o militante consegue contribuir decisivamente para melhorar o mundo. Além disso, eleva seu ego ao demonstrar que vê e decifra coisas que o cidadão comum é incapaz de perceber.

Quem pensa que isso não é sério, contudo, se engana. Na minha hipótese, uma das melhores explicações para o fato de tantas pessoas —de diferentes condições sociais, níveis de escolaridade, renda e discernimento político— se dedicarem tão intensamente à disseminação de fake news é a convicção de que participar da cadeia de difusão de informações falsas é, de fato, uma forma de militância política.

Para o repassador de fake news, isso é uma ação politicamente relevante e moralmente nobre. Não acha que está envenenando o ambiente social com falsidades sobre os adversários; o que ele faz é desmascarar as maldades do inimigo, revelando o quão sórdido, sorrateiro e desprezível ele é. É assim que faz sua parte para tornar a política um lugar melhor.

Para ser franco, não existe critério que determine se uma ação política é ou não ativismo. Se a pessoa se sente engajada em uma causa, vê-se como militante. Para um número crescente de pessoas, militar é preciso; viver não. As causas políticas dão sentido à existência, enquanto viver, por si só, parece não ter valor. Agora, então, que militar não custa mais do que um clique, quem não milita é que se limita.

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