Wilson Gomes

Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"

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Wilson Gomes

Não existe ódio do bem na complacência progressista e nos abusos identitários

Debate das últimas semanas registra um revés para o estilo identitário de ativismo que cerca a opinião pública

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O debate público das últimas semanas registrou um revés para o estilo identitário de ativismo na opinião pública.

Os episódios, em sequência, do linchamento moral da professora da UFBA e da revelação de posts de cunho racista da então assessora do Ministério da Igualdade Racial foram lidos, fora dos círculos habituais de condescendência, como sólidas evidências das críticas que se fazem ao modelo identitário de luta política: a beligerância permanente, a satanização do antagonista, a paixão por vigiar e punir, a vitimização como álibi para a violência e o duplo padrão moral adotado, que não tolera a menor violação por parte dos outros, mas que concede imunidades especiais aos seus.

Naturalmente, os interessados em garantir prerrogativas morais para esse estilo de militância se sentiram compelidos aos panos quentes e à racionalização. Uma das defesas mais especiosas foi o recurso a uma "ética de inscrição", por contraste com uma "ética de atitudes" que você e eu adotamos.

Na ética de atitudes, os comportamentos são julgados, um a um e à luz de valores, para serem considerados certos ou errados. Na ética de inscrição, os que fazem parte de um grupo especial —seguidores da fé verdadeira, quem quer a emancipação dos seres humanos, pessoas oprimidas et cetera— estão moralmente aprovados mesmo quando agem mal. No máximo, cometem deslizes. A moralidade da sua inscrição se sobrepõe à imoralidade do comportamento e a anula.

A segunda linha de defesa é um clássico. Eu já a chamei nesta coluna de "mimetismo defensivo" e consiste basicamente em vender a ideia de que o identitarismo não é uma estratégia de militância, mas a forma de ser de movimentos com pautas morais elevadas.

Na ilustração em bico de pena preto e branco, tres individuos vistos de frente, os dois dos extremos apoiados nos ombros do que está no centro. No lugar de rostos aparecem três digitais na cor ferrugem bem avermelhada. Os três retratados até a cintura, o desenho de seus torsos parecem emergir de raízes irregulares prendidas ao solo
Ilustração de Ariel Severino para coluna de Wilson Gomes de 4 de outubro de 2023 - folhapress

Ora, a política de identidade, desde que se começou a teorizá-la no fim dos anos 1970, é apresentada como um tipo de estratégia política de grupos estigmatizados. Não se confunde com os próprios grupos, que podem ou não adotá-la. Havia feminismo e luta por direitos civis antes dos anos 1980, assim como é possível ser feminista e antirracista sem adotar a militância identitária.

Mas, convenhamos, há coisa mais confortável do que se dizer, complacentemente, que identitários negros são "o movimento negro" e que, como são vítimas da sociedade, o que fazem é desculpável? Ou que quem condena uma prática deplorável de um transativista identitário está atacando todas as pessoas trans? A causa de um movimento vira um escudo: é preciso que o crítico do comportamento seja lido como inimigo da causa.

De fato, o movimento negro luta por direitos, mas quem adota um padrão identitário de militância sobrecarrega essa luta, quando não se desvia dela, para se dedicar cotidianamente às suas estratégias de vitimização, de vocalização do ressentimento, de defesa do seu monopólio da virtude, de coleta e desfrute pessoal de bônus e compensações devidos a todos aqueles de quem se proclama representante, de guerrilha permanente.

Desculpem, isso não é luta para conquistar coisas, mas por superioridade moral e por posições no mercado de virtudes.

O identitarismo é só um estilo de militância, organizada em torno da identidade coletiva de um grupo cujos membros se consideram estigmatizados ou oprimidos pelo resto da sociedade, para enfrentá-lo por meio da luta por representações, valores, comportamentos e linguagem.

Há identitários de esquerda ou de direita, conservadores ou liberais. Há, inclusive, identitários pertencentes a maiorias demográficas, como os xenófobos anti-islâmicos da Europa. Evangélicos, nacionalistas de direita ou de esquerda e até a militância homofóbica adotam padrões identitários de militância em toda parte do mundo. Só não há identitário universalista, tolerante e pluralista, por incompatibilidade de valores.

O assédio, a guerra permanente, a reivindicação de superioridade moral mesmo quando se é a mão que brande o chicote, a intimidação, nada disso é um exagero eventual, um caso isolado, um episódio desimportante, mas o próprio método de militância identitária, em coerência com as premissas que adota.

A complacência dos progressistas, que correm para tudo mitigar, racionalizar, finda por reforçar esse comportamento ao oferecer vexaminosos salvo-condutos, excludentes de ilicitudes e indulgências para pecados futuros. Essa cumplicidade não apenas desmoraliza a crítica de esquerda aos mesmos abusos praticados pelo "outro lado", como termina por ser corresponsável pelo "ódio do bem". Só que ódio do bem não existe.

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