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Luiza Fecarotta

Mari Hirata ensinou-me sobre figos, mangas, ovos e magia

Chef morreu no último dia 30, em Tóquio

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São Paulo

Minha querida Mari, a ridícula ideia de nunca mais te ver é tão nebulosa, que certa paralisia me roubou a possibilidade de lhe escrever antes. É como se o mundo se calasse e eu o observasse esquálido, gélido e aborrecido —o oposto do que sua presença emprestou a ele. Você foi uma pessoa com quem aprendi sobre mangas e figos, sobre delicadeza e generosidade.

Fiquei intrigada quando me contou que uma manga, no Japão, pode custar até 150 dólares —uma única manga, essa fruta que gosto de comer com as mãos, um pouco como bicho, fincando os dentes e aqueles fiapos que vão se instalando entre um e outro, lambuzando dedos, nariz, queixo e nos dando uma alegria pura e infantil.

A chef Mari Hirata, em foto do ano 2000 - Ed Viggiani/Folhapress

Você descreveu e eu fui construindo a cena mentalmente, mangas embaladas em redinhas, ainda na árvore, uma a uma, para que fiquem protegidas até amadurecer e cair, escoltadas. As primeiras chegam a ser leiloadas por valores impraticáveis e lembro de você me dizer que no Japão "tem-se o culto de comer a primeira qualquer coisa da estação". Achei lindo e guardei.

Sobre os figos, ensinou-me o preparo da torta com pistache, que nunca tive coragem de fazer. Não se deve colocar a fruta direto na massa, você disse, pois solta muita água. O creme de pistache serve como uma esponja, que suga o caldinho da fruta, onde está concentrado o gosto.

O que mais gostei foi de ouvi-la sobre o esmero e a delicadeza com que trata cada figo. Lava essa fruta que é uma flor com água morna e retira o máximo do pó branco que o envolve, com o cuidado de não romper sua casca. Na casca, contou-me, está concentrado o perfume, por isso é preciso mantê-la no preparo. Mas há de ter paciência para remover essa camada de pesticida que geralmente a envolve no Brasil.

Com você também aprendi que os japoneses pescam atum com anzol e, tão logo os peixes mordem a isca, morrem eletrocutados. Não se debatem (e assim mantêm sua carne livre de hematomas); tampouco soltam adrenalina, hormônio que lhe rouba o sabor delicado.

Eu, obcecada por galinhas e ovos, sabia apenas que estes, quando envelhecem, ficam desonestos —a clara, transparente e menos densa; idem a gema, que incha e fica com a membrana mais frouxa. Enxerguei-me em estado de puro fascínio quando me disse que no Japão, onde se concentra o maior consumo de ovos per capita do mundo, as datas de validade são carimbadas na casca e, em alguns casos, exibe até a data de postura.

Foi com você, também, que aprendi sobre o costume dos japoneses de preparar ovos em termas. São acomodados em uma cesta e mergulhados na água quente que brota do solo vulcânico. Em seu primeiro livro, ao qual recorro com frequência, está associado a aspargos verdes (e de preferência grossos), queijo parmesão, manteiga e pimenta em uma receita que recomenda o cozimento a 64 graus, a serem medidos com termômetro.

Lembro-me de quando lhe propus dividir comigo os detalhes de um jantar imaginário, que tivesse vontade de fazer. Não havia limites. Era um exercício de ficção e embelezamento do mundo —este mesmo que você deixou tão precipitadamente e o esvaziou ainda mais com sua morte.

Sua escolha foi cozinhar para um ídolo, o cineasta Takeshi Kitano, no barco Himiko, dese­nhado por Leiji Matsumoto, um dos principais quadrinistas japoneses, a navegar pelos canais de Tóquio. Você construiu o cardápio a partir de um eixo, o cogumelo matsutake, raro, selvagem, de perfume suave.

Primeiro, ele daria forma a uma infusão em um consomê de hamo, um peixe gorduroso; depois, surgiria inteiro, grelhado na brasa, com aromáticas gotinhas de limão japonês. Em seguida, finas lâminas de wagyu embalariam o cogumelo antes de ir ao carvão para ser lambido com um leve tostado. Ao convidado restaria a possibilidade de escolha da bebida: champanhe ou um bom sa­quê japonês servido em um copo pequeno.

Não faz nem três meses que falei com você por email. Perguntava sobre a Neide Rigo e tive o prazer de ouvi-la pela última vez, atestando sua docilidade, com firmeza e conhecimento. "Querida Luiza, que saudades de você e da época que eu escrevia algumas coisas e você arrumava milagrosamente!"

Escreveu-me uma mensagem longa, contou-me sobre a situação da pandemia no Japão, e sobre a Neide, esparramou-se na escrita —"Quanto à Neide, nossa querida Neide", começou.

"Ainda em época de pandemias as propostas dela estão cada vez mais na ordem do dia, agora que temos mais tempo, repensamos nosso espaço mesmo morando em apartamento apertado, o que podemos plantar na varanda? Que fazer para diminuir o lixo… Como usar um repolho inteiro até o fim?"

Antes da última exclamação —​porque conservou, até o fim, esse hábito de se alegrar—, disse, "precisamos de uma Neide não só no Brasil, mas no mundo". Precisamos de uma Mari Hirata, também. Não só no Brasil, mas no mundo.

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